|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
BRASIL PROFUNDO
Falta de verba e interferência política dificultariam combate
10 mil trabalhadores vivem em condição de escravidão
FÁTIMA FERNANDES
CLAUDIA ROLLI
DA REPORTAGEM LOCAL
O Brasil do século 21 exibe dados vergonhosos: o número de
trabalhadores em condição de escravidão chega a 10 mil, concentrados no Norte e no Nordeste. A
informação é da Comissão Especial para o Combate ao Trabalho
Escravo do Ministério da Justiça.
No Pará, 75 denúncias de trabalho escravo foram registradas
neste ano, envolvendo mais de
3.000 pessoas, mais do que o dobro de 2001, informa a Comissão
Pastoral da Terra. Há denúncias
de que o Ministério do Trabalho
colocou em marcha lenta as fiscalizações por falta de verba e por
interferência de políticos.
Desemprego elevado e falta de
punição para quem escraviza ou
explora o trabalhador são as principais razões apontadas por quem
combate o trabalho forçado para
justificar a presença de "escravos"
no país. Há ainda, dizem eles, descaso do governo para tratar do assunto, apesar de ter reconhecido
oficialmente o problema em 95.
Frei Henri des Roziers, coordenador da Comissão Pastoral da
Terra no Sul do Pará, diz que tem
ligado quase diariamente para o
Ministério do Trabalho para pedir fiscalização no Pará, já que denúncias de trabalhadores que fogem da condição de escravos chegam todos os dias. "O que me disseram é que as fiscalizações, que já
não eram muitas, estavam suspensas por falta de verba."
Funcionários do Ministério do
Trabalho encaminharam recentemente denúncia a juízes do Trabalho para informar que as equipes móveis de fiscalização, formadas por pressão internacional, estão sendo desmontadas. A Folha
obteve com exclusividade cópia
do documento, em que informam
que essas equipes têm de enfrentar também o boicote de delegados regionais do trabalho que
barram ou dificultam a entrada
desses grupos em seus Estados.
A Folha apurou que, depois de a
Polícia Federal libertar trabalhadores da fazenda do deputado
Inocêncio de Oliveira (PFL-PE),
houve ordens para que nenhum
fiscal do trabalho repassasse relatórios ou fornecesse informações
a procuradores, sem antes comunicar o Ministério do Trabalho.
Para o procurador-geral do Trabalho, Guilherme Mastrichi, "não
dá para esperar grande projetos
nem fazer relatórios, enquanto o
trabalhador continua morrendo
no país". Ele disse que uma das
formas de coibir o trabalho forçado é com ações civis coletivas para
reparar os danos morais causados
aos trabalhadores "escravizados".
O pedido de indenização é de R$
1.000 por dia por trabalhador.
Alastrado pelo país
No Pará, os fazendeiros utilizam
os "escravos" para a derrubada de
florestas para a criação de pastos.
"A escravidão aumenta porque
não existe alternativa de emprego", afirma o frei Xavier Plassat,
coordenador da campanha contra o trabalho escravo da CPT.
Os trabalhadores são chamados
em alguns pontos conhecidos das
cidades, por meio de um carro de
som, pelos chamados "gatos"
-empreiteiros que trabalham
para os fazendeiros. São recrutados principalmente na Paraíba e
no Rio Grande do Norte. "Oferecem R$ 400 de abono e, como os
trabalhadores estão na miséria,
acabam aceitando a oferta sem
entender que já saem de lá com
dívidas da passagem", afirma. Os
fazendeiros também colocam
produtos à venda, o que facilita e
estimula o endividamento.
O Ministério Público do Trabalho investiga denúncias de trabalho escravo na colheita de maçãs
em pomares localizados em Vacaria (RS). Oito fazendas se comprometeram, por meio de termos
de ajuste de conduta, a melhorar
as condições de habitação, higiene e saúde dos trabalhadores. As
multas chegam a R$ 30 mil.
Em São Paulo, procuradores do
trabalho investigam o emprego
de mão-de-obra boliviana clandestina e em condição de trabalho
degradante em confecções da zona norte. Há um ano, alguns coreanos foram autuados por empregar bolivianos sem visto, alojados em condições precárias.
Em Mato Grosso do Sul, 87 trabalhadores submetidos a condição semelhante à de escravos, em
uma carvoaria em Água Clara,
reivindicaram os salários atrasados havia mais de um ano a um
juiz do trabalho que foi ao local
por meio de vara itinerante.
Em números
De 1995 a 2002, 4.900 "escravos"
foram libertados pelos grupos
móveis que integram o Gertraf
(Grupo Executivo de Repressão
ao Trabalho Forçado), formado
por sete ministérios, entidades
não-governamentais e sob coordenação do Ministério do Trabalho. Desse número, 1.468 foram
resgatados só neste ano.
O problema é que os fazendeiros voltam a ter escravos. Em
2001, segundo a CPT, nove fazendas voltaram a escravizar trabalhadores mesmo depois da autuação do grupo móvel de fiscalização e, neste ano, dez fazendas.
"Nenhum fazendeiro foi condenado por ter escravos", afirma.
Há casos de trabalhadores, segundo José Batista Afonso, advogado
e coordenador da CPT da região
de Marabá, que são ameaçados de
morte em caso de fuga.
"Não se faz nada porque tem
deputado no meio disso, grandes
pecuaristas, pessoas ligadas a
grandes grupos econômicos", diz.
A OIT aprovou projeto de cooperação técnica com o governo no
valor de US$ 1 milhão para fortalecer as instituições envolvidas no
combate ao trabalho forçado.
O problema é tão grave no país
que Tribunal Superior do Trabalho levou ao Ministério da Justiça
duas propostas: a criação de varas
itinerantes para atender "in loco"
aqueles que estão sendo submetidos a condições análogas a de escravidão e a criação de projeto de
lei para que as questões relativas
ao trabalho escravo passem a ser
de competência do juiz do trabalho, e não da Justiça federal ou estadual, como é hoje. "É preciso
confiscar as terras e colocar na cadeia quem escraviza o trabalhador", diz o ministro Francisco
Fausto, que preside o TST.
Outro lado
A secretária nacional de Inspeção do Trabalho, Vera Olímpia
Gonçalves, afirmou que não houve corte de verbas nas operações
dos grupos móveis de combate ao
trabalho escravo nem cancelamento de ações.
Em setembro, foram sete operações em Rondônia, Pará e Mato
Grosso do Sul -duas delas continuam em andamento. Outras três
estão previstas para começar nas
próximas semanas no Maranhão,
no sul do Pará e no Mato Grosso.
De 95 a 99, R$ 1,843 milhão foi
gasto no combate ao trabalho forçado (inclui orçamento previsto e
recursos materiais). No período
de 2000 a 2002, R$ 2,923 milhões.
Nas contas do governo, R$ 5,5
milhões foram gastos em indenização aos trabalhadores libertados. Para ela, os números mostram que as ações continuam.
De 95 a 98, diz, foram 777 libertados, enquanto nos últimos três
anos foram 3.484. Neste ano, foram visitados 44 locais -50% no
Pará- com 1.468 trabalhadores
libertados até a última sexta-feira.
"Apesar de deslocarmos cada
vez mais auditores para as fiscalizações, é claro que não vamos
conseguir atender todas as denúncias. Mas estamos ampliando
isso", afirmou a secretária.
Texto Anterior: Painel Próximo Texto: Janio de Freitas: Caminhos do voto Índice
|