São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

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+ ciência

Jon Beckwith é biólogo e geneticista em Harvard, mas suas idéias sobre impacto social da ciência e seu ativismo político sempre atraíram a ira de seus pares na pesquisa de ponta

Maggie McDonald
da "New Scientist"

Ciência com consciência social sempre foi a missão de vida de Jon Beckwith. Ele foi um dos primeiros a alertar para os possíveis riscos da engenharia genética, em 1969. Suas tentativas de emprestar responsabilidade à pesquisa atraíram-lhe a ira de muitos quadrantes _entre eles o da organização racista Ku Klux Klan e o de seus próprios colegas de pesquisa. Ele agora ministra um curso na Escola Médica de Harvard sobre as implicações sociais da ciência. Na entrevista a seguir, ele fala de duas de suas grandes paixões: a política e a bactéria Escherichia coli.

Por que o sr. decidiu dar um curso sobre os aspectos sociais da ciência? É possível, mesmo, ensinar alguém a ser um ativista?
Sempre incluí alguma discussão sobre as implicações sociais da ciência em meus cursos de genética. Mas, em 1987, alguns estudantes me procuraram e perguntaram se eu estaria disposto a conduzir uma disciplina sobre questões sociais em biologia. Eles estavam muito desapontados com a ausência de toda e qualquer menção a esses assuntos na sua formação. O curso inclui leituras de filosofia, história e sociologia da ciência, assim como a abordagem de alguns aspectos mais abertamente políticos. Quero mostrar que é possível ser um cientista e, ao mesmo tempo, politicamente engajado.

O que o inspirou a se tornar um cientista?
Era muito bom em matemática e ciência no colegial. Quando comecei a me movimentar pela ciência, ficava mudando de campo, tentando chegar mais perto de uma ciência que tivesse algo a ver com seres vivos. Assim, da matemática passei para a química e depois para a bioquímica, na pós-graduação, e finalmente para a genética.

O sr. já admitiu publicamente que quase deixou a Universidade Harvard quando era pós-graduando porque a considerava emburrecedora. O que o fez mudar de idéia?
Encontrei um laboratório em que me sentia muito feliz por trabalhar. Aí _e essa é uma lembrança muito vívida para mim_, no segundo ano da pós-graduação, estava na biblioteca fazendo pesquisa para um curso que estava tendo com Jim [James D.] Watson [descobridor da estrutura do DNA, com Francis H.C. Crick], e descobri alguns trabalhos dos franceses François Jacob, Elie Wollman e Jacques Monod. Eles estavam usando genética de bactérias para resolver problemas fundamentais da biologia. Não foi só a ciência que me atraiu. A retórica elegante, tipicamente francesa, era viva como nenhum outro trabalho científico. Depois de decidir permanecer um cientista, o sr. começou a preocupar-se com as maneiras pelas quais a ciência poderia ser mal empregada.

O que o radicalizou?
Eu me tornava cada vez mais envolvido na política, particularmente depois que retornei aos Estados Unidos em 1965, para Harvard, depois de viver na Inglaterra e na França. Rapidamente me engajei no movimento contra a guerra do Vietnã. Boston [cidade vizinha a Cambridge, onde fica Harvard] era um dos bastiões da oposição à guerra. Mais tarde, após o assassinato de Martin Luther King, comecei a militar em questões de discriminação racial. De início não conectei nada disso com minha pesquisa, nem vi a ciência como arena para o ativismo político. Isso porque, na minha educação científica, assim como na de todo mundo, a ciência era apresentada como um empreendimento neutro. Fica subentendido que os cientistas não têm muito a ver com o mundo exterior, a não ser para fornecer resultados científicos. Nunca se aprende que os cientistas por vezes se arrependem do que fizeram, ou que trabalham para impedir o mau uso da ciência.

Quando o sr. começou a refletir sobre as implicações sociais da pesquisa genética?
Numa entrevista coletiva que organizei em 1969, para discutir um artigo meu sobre a transferência de um gene de bactéria para um vírus, meus colegas e eu previmos que uma era de engenharia genética era iminente. Eu vinha pensando havia anos que seria possível fazer engenharia genética com seres humanos, mas sem pensar nas consequências negativas. Meu pensamento político começou a evoluir quando mais e mais cientistas começaram a considerar como sua ciência era usada para fins destrutivos.
A guerra do Vietnã teve muito a ver com isso, mobilizando particularmente os físicos. Eles deram início à organização Ciência para o Povo, que foi a mais radical organização de cientistas da época.
Estavam insatisfeitos com o modo com que princípios, idéias e resultados da física vinham sendo empregados para desenvolver armamentos para o Vietnã. Isso catalisou meu pensamento sobre essas questões.

Em 1970, o sr. dedicou seu prêmio Eli Lilly de Microbiologia aos Panteras Negras. Por quê?
A razão principal foi que o governo da época estava usando todo tipo de método ilícito para tentar destruir a organização. Quando se permite que um governo destrua uma organização daquela maneira, certamente ele pode se voltar contra outros grupos, criando de fato um Estado policial. Foi, em parte, uma manifestação política. Eu também tive de enfrentar a questão sobre como podia aceitar um prêmio de uma companhia farmacêutica mesmo estando insatisfeito com o modo pelo qual muitas dessas empresas estavam explorando as pessoas.

O que o sr. pensa das novas restrições norte-americanas para concessão de vistos consulares a estudantes estrangeiros? Isso poderia prejudicar a pesquisa?
A questão dos vistos é particularmente importante. Por exemplo, eu fiquei sabendo que começaram a restringir vistos para pessoas de fora dos Estados Unidos que queiram trabalhar com microbiologia. Ouvi que em alguns países os estudantes são informados de que não podem se candidatar a programas de doutorado nos departamentos de microbiologia nos EUA. Ao mesmo tempo, o governo está recomendando mais trabalho nessa área e pondo mais dinheiro nela. Só que, com um número limitado de laboratórios, eles estão restringindo o pessoal que tem sido, em certa medida, a principal força de trabalho em vários desses laboratórios. Quando olho em volta de meu próprio laboratório, por exemplo, constato que não tenho um único pós-doutorando norte-americano. Vários são da Europa, outros de Israel, Japão e Argentina. É similar ao restante de Harvard. Acho que isso vai se tornar um problema sério, mas é parte do cenário político mais amplo. Espero que em algum momento uma mudança de governo venha liberalizar as coisas, porque essas políticas de imigração andam junto com outras políticas sociais muito restritivas e perigosas.
Também estou muito descontente com o modo pelo qual alguns Estados nos EUA acabaram com a ação afirmativa para minorias étnicas. O trabalho que nós e outros fizemos para abrir faculdades médicas e universidades às minorias parece ter entrado em marcha à ré. No Texas e na Califórnia, por exemplo, isso levou a uma tremenda redução no número de afro-americanos nas escolas de direito.

Em seu novo livro ["Making Genes, Making Waves", Harvard University Press, US$ 27,95], o sr. escreve que de algum modo foi mais fácil aceitar ser um alvo do ódio da Ku Klux Klan do que do antagonismo de seus colegas. Poderia explicar?
Parece que cientistas desinteressados do mundo além do laboratório acham difícil trabalhar com colegas que estão interessados. Ouvi falar de muitos casos de professores que são chefes de laboratórios e deixam claro a seus colaboradores que não gostariam de vê-los envolvidos em atividades políticas, pois isso não seria papel de cientistas e poderia distrair sua atenção do trabalho. Isso certamente torna difícil interagir com tais pessoas. Aconteceu no meu próprio local de trabalho, com estudantes e pós-doutorandos meus conhecidos que são interessados em se tornar socialmente ativos na ciência. Foi deixado claro que isso traria problemas para eles.

Por que é tão difícil engajar as pessoas?
A atitude parece ser a de que a política exige esforço, e que portanto isso retira algo da ciência que se está produzindo. Há muito mais biólogos hoje do que quando eu estava começando, e muitos deles estão enfrentando os mesmos problemas. A competição é rápida e o dinheiro está se tornando uma grande questão. Em contraste, na graduação e na pós-graduação parece haver muito mais interesse em política do que havia nos anos 60 e 70. Eles sentem que estão carentes de exposição a esses temas. Vejo isso nos estudantes com quem converso aqui em Harvard. O curso que venho dando sobre o contexto social da ciência se expandiu enormemente nos últimos anos. No entanto, quando os estudantes avançam na carreira e entram na corrida, o engajamento se torna muito difícil para eles.

O sr. começou sua pesquisa com [a bactéria] Escherichia coli. Ela ainda o fascina?
Para começar, fiquei maravilhado com tudo o que se podia descobrir com experimentos muito simples. Creio que o trabalho de nosso laboratório e o de outros mostraram que experimentos simples com essas bactérias poderiam levar a descobertas de porte. Depois de tantos anos trabalhando com o micróbio, como o sr. se sente em relação a ele? Acho que o amo. Tenho uma pós-doutoranda nova em meu laboratório, da França, que tem encontrado dificuldades para fazer funcionar alguns experimentos, por isso estamos repetindo juntos alguns dos antigos experimentos realizados primeiramente por Jacob e Wollman nos anos 50. Ela está bem entusiasmada com eles, como funcionaram de uma maneira linda. E eu também. Cada experimento que funciona é um milagre, mas repetir algo que deixei de fazer nos últimos 30 anos foi particularmente gratificante.

Como o ativismo político afetou sua pesquisa?

Ele me permitiu dar um passo atrás e apreciar ainda mais a ciência. Tem sido muito emocionante. Pode parecer irônico, porque tenho estado envolvido politicamente com grupos de pessoas que dedicam a maior parte de seu tempo criticando a ciência. Parte dessa apreciação vem da tentativa de entender em sentido mais profundo onde foi que errei na minha própria pesquisa, e com quais falsas premissas eu posso ter começado. Isso tem feito com que pense mais sobre como a ciência é feita, de um modo que muitos de nós tendem a não fazer.

O sr. diz que agora está do lado dos anjos, não mais dos radicais assustadores. O sr. se vê como parte do establishment?
Não diria isso. Minha atividade mais forte e duradoura ainda se dá com um grupo que começou na esteira do [movimento] Ciência para o Povo, nos anos 70. Mais recentemente, publicamos um livro que eu e cinco outros membros co-editamos, chamado "The Double Edged Helix" [A Hélice de Dois Gumes]. É sobre as implicações sociais da genética. Nesse grupo, nós ainda nos sentimos com frequência como se estivéssemos trabalhando contra a corrente social dominante.
O que há de diferente, agora, é que também estou trabalhando com organizações mais tradicionais, como o comitê de assuntos éticos, legais e sociais do Projeto Genoma Humano, ou com o Centro Hastings em Garrison, Estado de Nova York, que é um instituição-líder na área de bioética nos Estados Unidos. Percebo que alguns desses grupos estão mais receptivos para os tipos de idéia que temos apresentado anos a fio.

Que áreas de pesquisa genética mais o preocupam
O que mais me preocupa é a crescente quantidade de informação genética sobre pessoas e grupos que está se tornando disponível. Há boas razões para se preocupar com a possibilidade de essa informação ser usada para estigmatizar e discriminar as pessoas _ou coisa pior. Prevenir maus usos exigirá uma comunidade de geneticistas muito mais ativa, que esteja muito mais engajada tanto na educação quanto na exposição das distorções da informação científica.



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