São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

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Ponto de fuga

Infelizes monstros

No começo do filme, Lon Chaney, Jr. vem num carro conversível com um sorriso despreocupado e feliz. Ele não tem o tipo do galã. É grande, meio espesso, bonachão, bom rapaz. Termina morto por pancadas violentas dadas pelo próprio pai. Entre uma coisa e outra, o rapaz bonachão se transformara em lobisomem. O filme, "The Wolf Man",dirigido em 1941 por George Waggner, foi editado em DVD pela Universal, com sete outros, numa caixinha preta com forma de ataúde. O conjunto leva o título de "Classic Monster Collection".
Recobre o período de 1931 a 1954, quando a companhia Universal produzia filmes de orçamento baixo. Frankenstein, Drácula, o Homem Invisível, a Múmia, o Fantasma da Ópera, o Monstro da Lagoa Negra são os protagonistas. Nenhum deles encarna apenas o mal, nenhum possui uma inteireza desumana. Bem ao contrário, vivem pulsões e sentimentos contraditórios e são, por isso mesmo, infelizes e comoventes.
Em "The Bride of Frankenstein"(James Whale, 1933), numa sequência em que o kitsch é sublimado pela sensibilidade, genial e sincera, do diretor, o monstro chora. Na Lagoa Negra, o anfíbio assustador nada no fundo das águas, voltado para cima, para a superfície onde desliza a heroína.
Ele é como o reflexo deformado do humano; ambos compõem um casal impossível que se une, num instante, graças ao estranho balé aquático. Os monstros têm força e grandes poderes, mas guardaram sentimentos humanos. Por isso, sempre perdem.

Máscaras - O caixãozinho preto da Universal, com a coleção dos monstros em DVD, é um cofre de tesouros. Esses filmes não se destinavam a um público de bom gosto ou com pretensões intelectuais. Pouco importa: eram todos inspirados, poéticos, dirigidos com grande apuro. Dois deles modelaram, em modo definitivo, as imagens de Drácula e de Frankenstein. Foi a partir de Bela Lugosi, no "Drácula" de Tod Browning, feito para a Republic, em 1931, que os vampiros sucessivos do cinema tiraram o molde.
Lugosi é inesquecível, com sua célebre capa e condecoração, empunhando um castiçal, no alto das escadarias enormes em ruínas, com seu espesso sotaque húngaro, comentando um uivo que vem de fora: "Listen to them. Children of the night! What music they make!". Nos dois filmes sobre Frankenstein, James Whale não apenas dirigia, mas concebia ainda cenários e figurinos. Ele projetou Boris Karloff como astro máximo dos filmes de terror. A maquiagem de Jack P. Pierce, que incorporava os parafusos no pescoço para os choques elétricos, fez, para sempre, a cara do personagem aterrador, inventado, na literatura, por Mary Shelley.

Sangre - "Drácula", em 1931, foi filmado duas vezes ao mesmo tempo. Durante o dia, era rodado em inglês. À noite, os mesmos cenários e guarda-roupa serviam para a versão em espanhol, com outros atores e outro diretor, no caso George Melford, autor do mítico "Sheik", com Rudolf Valentino. É uma versão viva e intensa, bem diferente do caráter frio e quase sádico da que foi concebida por Tod Browning para Bela Lugosi. Não está incluída no estojo da Universal. É vendida num DVD separado, da mesma marca.

Sons - Philip Glass compôs uma nova partitura para o "Drácula" de Browning, que pode ser ouvida no DVD da Universal. Ela destrói os longos silêncios cheios de calafrios que o diretor havia inserido em seu filme e dá vontade de voltar correndo para o original. De todos os filmes reunidos na coleção, o único que sofre restrições dos fãs habituais é "The Phantom of the Opera", dirigido por George Waggner. As críticas provêm da mistura de dois gêneros, musical e terror, em aparência opostos. Mas a síntese funciona. O fantasma é Claude Rains, que estrelara "The Invisible Man". O galã é Nelson Eddy, ótimo barítono, parceiro de Jeanette MacDonald nas operetas da Metro. O filme é cheio de delicada perversão, com estupenda fotografia em Technicolor: algumas cenas certamente inspiraram Dario Argento em sua recente adaptação da história.


Jorge Coli é historiador da arte. E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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