São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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Ciência em Dia

Adeus ao sequenciamento de DNA

Marcelo Leite
editor de Ciência

Cientistas e jornalistas ainda não pararam de se referir à sequência do DNA de uma espécie -seu genoma- como "segredo" ou "significado" dessa forma de vida, mas os primeiros já começam a intuir que o público em algum momento poderá passar a exigir resultados, em lugar de hipérboles. A ordem do dia agora é converter fábricas caras e ultra-especializadas de leitura bioquímica, como o Centro Sanger do Reino Unido, em usinas de criatividade biológica capazes de entregar, ainda que em prestações, a prometida revolução na medicina.
A má notícia é que a coisa vai demorar décadas e deverá se parecer mais com uma reforma do que com uma revolução. Numa visita ao Sanger, por exemplo, ouve-se que as ferramentas da genômica poderiam originar tratamentos para o câncer (ninguém mais fala em cura) no prazo de 20 a 25 anos. Muitos diriam que isso ainda é otimismo demais.
Nem todos esqueceram exageros como o do então presidente norte-americano Bill Clinton na cerimônia de apresentação do rascunho do genoma humano, em junho de 2000, segundo o qual a palavra "câncer" acabaria por designar, para nossos filhos e netos, apenas uma constelação no céu. Todos os cientistas ouviram quietos e satisfeitos, pois centenas de milhões de dólares fluíam facilmente no leito da retórica determinista.
Nessa visão simplificadora da medicina, todas as doenças se pareceriam com síndromes genéticas raras, provocadas por mutações localizadas num único gene. Conhecendo a sequência "normal" do genoma da espécie, seria fácil encontrar tais desvios e, quem sabe, encontrar formas de corrigi-los ou neutralizá-los.
Richard Wooster, um dos responsáveis pelo Projeto Genoma do Câncer do Centro Sanger, diz para quem quiser ouvir que provavelmente 90% dos fatores que contribuem para o surgimento de tumores estão relacionados com estilo de vida (alimentação, exposição a substâncias cancerígenas) e não com hereditariedade. Conhecem-se 50 genes relacionados com câncer (e não "do" câncer), mas é provável que existam outros 450. Em cada tumor podem estar implicadas combinações de 10 a 15 deles -complexidade difícil de abordar experimentalmente.
Por essas e por outras é que o Sanger -que produziu um terço das sequências do genoma humano- está agora despejando 15% de seu orçamento de US$ 300 milhões anuais na pesquisa sobre tumores. Os pesquisadores sabem que precisam acelerar a obtenção de resultados, para permanecer nas graças do público e dos que decidem sobre a alocação de recursos para pesquisa genômica (mais de US$ 1 bilhão por ano no mundo todo).
No caso do Sanger, essa reorientação significa transformar um centro de sequenciamento num centro de pesquisa "baseada em hipóteses". Nas palavras de seu atual diretor, Allan Bradley, um centro voltado para a descoberta das funções dos genes, portanto dos mecanismos pelos quais se possa efetivamente usar a genômica em biomedicina.
Em seus planos está cortar de 75% para 10% ou 15% a parcela de funcionários envolvida com sequenciamento até 2006, baixando de 40 milhões para 10 milhões o número de sequências curtas transcritas diariamente. O número total de empregados deverá no entanto passar de 600 a 800, para a constituição de pelo menos 20 grupos de "hipóteses", para os quais o Sanger está caçando talentos.
No Brasil também ocorre tal migração para a chamada genômica funcional. Mas não deixa de ser sintomático que os projetos genoma daqui tenham sido qualificados como "meia ciência" por um ex-presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), Sérgio Ferreira, justamente por não se basearem em hipóteses específicas.


O jornalista Marcelo Leite viajou ao Reino Unido a convite do Conselho Britânico (www.britishcouncil.org.br)


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