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Ciência em Dia
Adeus ao sequenciamento de DNA
Marcelo Leite
editor de Ciência
Cientistas e jornalistas ainda não pararam de se referir à sequência do
DNA de uma espécie -seu genoma-
como "segredo" ou "significado" dessa
forma de vida, mas os primeiros já começam a intuir que o público em algum
momento poderá passar a exigir resultados, em lugar de hipérboles. A ordem do
dia agora é converter fábricas caras e ultra-especializadas de leitura bioquímica,
como o Centro Sanger do Reino Unido,
em usinas de criatividade biológica capazes de entregar, ainda que em prestações,
a prometida revolução na medicina.
A má notícia é que a coisa vai demorar
décadas e deverá se parecer mais com
uma reforma do que com uma revolução. Numa visita ao Sanger, por exemplo, ouve-se que as ferramentas da genômica poderiam originar tratamentos para o câncer (ninguém mais fala em cura)
no prazo de 20 a 25 anos. Muitos diriam
que isso ainda é otimismo demais.
Nem todos esqueceram exageros como o do então presidente norte-americano Bill Clinton na cerimônia de apresentação do rascunho do genoma humano, em junho de 2000, segundo o qual a
palavra "câncer" acabaria por designar,
para nossos filhos e netos, apenas uma
constelação no céu. Todos os cientistas
ouviram quietos e satisfeitos, pois centenas de milhões de dólares fluíam facilmente no leito da retórica determinista.
Nessa visão simplificadora da medicina, todas as doenças se pareceriam com
síndromes genéticas raras, provocadas
por mutações localizadas num único gene. Conhecendo a sequência "normal"
do genoma da espécie, seria fácil encontrar tais desvios e, quem sabe, encontrar
formas de corrigi-los ou neutralizá-los.
Richard Wooster, um dos responsáveis
pelo Projeto Genoma do Câncer do Centro Sanger, diz para quem quiser ouvir
que provavelmente 90% dos fatores que
contribuem para o surgimento de tumores estão relacionados com estilo de vida
(alimentação, exposição a substâncias
cancerígenas) e não com hereditariedade. Conhecem-se 50 genes relacionados
com câncer (e não "do" câncer), mas é
provável que existam outros 450. Em cada tumor podem estar implicadas combinações de 10 a 15 deles -complexidade difícil de abordar experimentalmente.
Por essas e por outras é que o Sanger
-que produziu um terço das sequências
do genoma humano- está agora despejando 15% de seu orçamento de US$ 300
milhões anuais na pesquisa sobre tumores. Os pesquisadores sabem que precisam acelerar a obtenção de resultados,
para permanecer nas graças do público e
dos que decidem sobre a alocação de recursos para pesquisa genômica (mais de
US$ 1 bilhão por ano no mundo todo).
No caso do Sanger, essa reorientação
significa transformar um centro de sequenciamento num centro de pesquisa
"baseada em hipóteses". Nas palavras de
seu atual diretor, Allan Bradley, um centro voltado para a descoberta das funções dos genes, portanto dos mecanismos pelos quais se possa efetivamente
usar a genômica em biomedicina.
Em seus planos está cortar de 75% para
10% ou 15% a parcela de funcionários
envolvida com sequenciamento até
2006, baixando de 40 milhões para 10 milhões o número de sequências curtas
transcritas diariamente. O número total
de empregados deverá no entanto passar
de 600 a 800, para a constituição de pelo
menos 20 grupos de "hipóteses", para os
quais o Sanger está caçando talentos.
No Brasil também ocorre tal migração
para a chamada genômica funcional.
Mas não deixa de ser sintomático que os
projetos genoma daqui tenham sido
qualificados como "meia ciência" por
um ex-presidente da SBPC (Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência),
Sérgio Ferreira, justamente por não se
basearem em hipóteses específicas.
O jornalista Marcelo Leite viajou ao Reino Unido a convite do Conselho Britânico (www.britishcouncil.org.br)
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