São Paulo, domingo, 29 de fevereiro de 2004

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MEMÓRIAS AMAZÔNICAS

Divulgação
Detalhe de colar cerimonial feito por membros do povo indígena amazônico urubu-caapor, com penas de tucano, saurá e anambé-azul, hoje no acervo do Museu Paraense Emilio Goeldi


Chega às livrarias nova edição de "Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas", escrito no século 18 pelo jesuíta português João Daniel; obra com mais de mil páginas é enciclopédia da natureza e do homem amazônicos

José Augusto Pádua
especial para a Folha

Os grandes livros nunca são fenômenos totalmente isolados, apesar de quase sempre apresentarem uma dose considerável de singularidade e até mesmo de implausibilidade. Não é nada surpreendente, por exemplo, que o padre João Daniel, um jesuíta português nascido em 1722, tenha dedicado os últimos anos da sua vida a redigir memórias e reflexões sobre as décadas em que viveu na Amazônia. Sua história de vida confundia-se com o mundo do Maranhão e do Grão-Pará, aonde chegou com menos de vinte anos, realizou seus estudos, tornou-se padre e viveu nas fazendas e missões dirigidas por seus companheiros de ordem em plena floresta.
A decisão de escrever sobre a região, por outro lado, inseria-se em uma tradição intelectual bem mais antiga. Antes e durante o processo de construção histórica da figura do viajante-naturalista leigo e profissional, que foi ganhando contorno mais definido entre os séculos 17 e 19, intelectuais da Igreja se dedicaram a coletar e sistematizar informações sobre a natureza e os habitantes dos novos mundos que estavam sendo alcançados, e na verdade criados, pela expansão européia.
Ainda no século 16, apenas no contexto da América Latina, padres jesuítas estavam produzindo obras tão importantes quanto a "Historia Natural y Moral de Las Indias", de José de Acosta, e os tratados "Do Clima e Terra do Brasil" e "Do Princípio e Origem dos Índios do Brasil", de Fernão Cardim. É verdade que, entre 1637 e 1644, durante o governo de Maurício de Nassau em Recife, atuaram no Nordeste naturalistas profissionais europeus como Willem Pies e Georg Marcgrave. Mas não se deve esquecer que, mais de uma década antes, o franciscano Frei Cristóvão de Lisboa estava organizando a série de notas e desenhos que comporiam o manuscrito da "História dos Animais e Árvores do Maranhão", publicada apenas em 1967.
Pode-se argumentar que os textos históricos e descritivos produzidos por intelectuais da Igreja na América colonial apresentaram, de maneira geral, um objetivo comum: compartilhar informações e propostas que favorecessem o duplo processo de colonização e de catequese, entendidas acertadamente como dois lados da mesma moeda (apesar da existência de um complexo jogo de convergências e divergências entre representantes da Igreja e autoridades coloniais). É fundamental superar, no entanto, a imagem dessa literatura como algo homogêneo e repetitivo. Dentro de um mesmo objetivo político e religioso, podiam existir importantes singularidades e diferenças de opinião, inclusive entre membros de uma mesma ordem.
Se o "Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas", de João Daniel, escrito entre 1757 e 1776 e agora reeditado (Contraponto Editora, dois volumes, 1.259 págs., R$ 45), é parte integrante de uma tradição intelectual tão definida, em que sentido é possível destacar o seu caráter singular e inusitado? Basicamente por três razões: as condições de produção, a abrangência e o sentido político da obra. Em 1757, no contexto do aumento das tensões entre a Companhia de Jesus e o governo do Marquês de Pombal, que culminaria dois anos depois na expulsão dos jesuítas de todos os territórios portugueses, Daniel foi preso e deportado para Portugal junto com nove outros eclesiásticos. Acusado de ofender o governador Francisco de Mendonça Furtado, meio-irmão de Pombal e executor do seu projeto econômico para a Amazônia, ele permaneceu enclausurado até o ano de sua morte, em 1776. Ou seja, o autor escreveu seu volumoso tratado sem consultar bibliotecas e sem participar de debates intelectuais, valendo-se apenas de uma oferta escassa de papel e da possibilidade de trocar informações com seus companheiros de prisão, mesmo assim de maneira parcial e indireta. Apesar do proverbial cultivo jesuíta da "arte da memória", o longo confinamento produziu claras limitações à realização do trabalho. Ao comentar as "muitas tintas preciosas" existentes na Amazônia, por exemplo, o autor reconheceu que "não sei o nome de todas; nem as espécies de muitas, e, como estou enterrado, não posso informar-me". As péssimas condições de produção tornam ainda mais inusitado o escopo definido para a elaboração do livro. Daniel colocou-se o desafio de escrever um tratado vasto e completo, uma verdadeira enciclopédia da Amazônia setecentista. E conseguiu, em grande parte, realizar esse projeto. Mais ainda, logrou fazê-lo através de uma escrita lúcida e, muitas vezes, irônica e graciosa.

Digno de César
É o caso da comparação histórico-geográfica utilizada para descrever a grandeza do rio Amazonas: "Se Júlio César prometia ceder o império a quem lhe mostrasse a fonte do grande Nilo, qual seria o prêmio a quem lhe apontasse a fonte do máximo Amazonas, em cuja comparação aquele se avaliaria pigmeu, ou pequeno regato, e envergonhado, por não poder correr parelhas com este, fugiria a esconder-se na sua pequena mãe?". Ou então, mais adiante, quando o autor reconhece, após apresentar uma longa lista das opções de pesca na região, a sua incapacidade para dar conta do que hoje chamaríamos de "biodiversidade amazônica", exclamando que "basta já de peixe, sendo verdade que ainda não disse nem o dízimo das espécies diversas que cria o Amazonas". O estilo do autor, ao discorrer sobre os acidentes geográficos, caças, frutas, madeiras, ervas, minerais e outros aspectos da rica natureza regional, apresenta um saboroso ecletismo setecentista, onde se misturam observações empíricas, citações de escritores clássicos, alusões mitológicas greco-romanas e pregações moralistas católicas. A mitologia local e a cultura popular em processo de construção na Amazônia, através da fusão de elementos ameríndios e neo-europeus, também aparecem em muitas páginas, levando Euclides da Cunha a classificar João Daniel como um escritor "imaginoso".


"Se Júlio César prometia ceder o império a quem lhe mostrasse a fonte do grande Nilo, qual seria o prêmio a quem lhe apontasse a fonte do máximo Amazonas?", comparou João Daniel


Mas é justamente a conjugação entre a vontade de realismo e a abertura para o maravilhoso que tornam o texto um documento tão representativo dos dilemas do pensamento europeu pós-renascentista no contexto dos trópicos coloniais. O mesmo empirismo que autorizou o autor a refutar as autoridades clássicas -ao afirmar, por exemplo, que a "zona tórrida", tida como inabitável, era "não só habitável como muito sadia" -também o autorizava a reconhecer a existência das Amazonas, dos homens marinhos e das sereias, com base no testemunho pessoal de índios e religiosos. Ao falar dos animais, por outro lado, as informações zoológicas se misturavam com fábulas moralistas, através das quais era possível retirar lições edificantes para a pregação missionária. Mesmo os aspectos menos idílicos da vida na floresta, como a existência de animais repugnantes, insetos e pragas, foram interpretados em termos ao mesmo tempo pragmáticos e religiosos: "se no paraíso terreal houve uma serpente, não é muito que também o paraíso do Amazonas seja infeccionado de serpentes e outras pragas". As vastas informações apresentadas sobre os povos indígenas e seus costumes, incluindo alimentos, danças, músicas, crenças e artigos da cultura material que ainda hoje fazem parte do dia-a-dia amazônico, revelam uma proto-etnografia complexa e contraditória, que indica os dilemas e ambiguidades presentes no trabalho de catequese. Daniel reconhece que os índios "são gente como as da Europa, menos nas cores, em que muito se distinguem". Em determinado momento chega a fazer uma difícil operação cultural, ao assumir o ponto de vista dos nativos e questionar a naturalidade com que os luso-brasileiros encaravam a sua servidão: "Se viessem os índios a estabelecer-se no nosso Portugal, seria uma grave injúria e manifesta injustiça obrigar os portugueses a servi-los". Em outras partes do livro, no entanto, esses mesmos índios selvagens elogiados por sua falta de ambição pela acumulação material, ou pela habilidade das suas técnicas de manejo florestal, são acusados de "só pelas feições parecerem gente", pois no "viver e trabalhar se devem entender por feras". Os índios "mansos" e controlados pelos missionários, em outra perspectiva, são freqüentemente acusados de preguiçosos e ingratos, sem que o autor perceba os elementos de resistência cotidiana que parecem estar presentes em suas ações, como no caso do aldeado que, recusando-se a fazer o serviço pedido por um jesuíta, quando lembrado que havia sido curado de uma doença mortal, contesta: "Quem te pediu que me curasses, por que não me deixaste morrer?". Existe, por fim, um terceiro aspecto singular no "Tesouro Descoberto" que deve ser mencionado, apesar de não poder ser discutido adequadamente no espaço desta resenha. Trata-se do seu sentido político crítico, propositivo e reformista. Daniel chegou a afirmar que todas as suas descrições sobre a região e seus habitantes eram apenas um "preâmbulo" para as partes finais do livro, onde apresenta uma espécie de plano alternativo de colonização. Como bem demonstrou o historiador Kelerson Costa, em uma tese defendida na Universidade de Brasília sobre as leituras da Amazônia colonial, o padre Daniel foi um dos primeiros intelectuais a formular um projeto integrado de ocupação da região amazônica, que corrigiria os erros do passado e permitiria que os seus habitantes pudessem "facilmente desfrutar as suas grandes riquezas".

Potencial econômico
O autor afirma claramente que o verdadeiro "tesouro" por ele descoberto no Amazonas não era a natureza tropical por si mesma, mas sim a possibilidade de transformá-la em riqueza econômica. Um potencial que estava sendo abortado pela insistência em adotar métodos exploratórios que requeriam muito esforço e mão-de-obra, como as queimadas de florestas de terra firme para o plantio da mandioca, fazendo com que apenas alguns poucos grandes proprietários de escravos pudessem desfrutar da região.
A utopia de Daniel, para consolidar a colonização e o triunfo do cristianismo na região, estava em facilitar a vinda de famílias pobres da Europa, através da distribuição livre de terras e do redirecionamento da agricultura para as regiões de várzea, aproveitando a fertilização natural produzida pelos rios. A economia regional deveria se transformar de extrativista em domesticadora, de tal maneira que as drogas do sertão e as espécies européias pudessem ser cultivadas nos quintais das propriedades familiares. Para facilitar essa ocupação menos elitista, seriam necessárias reformas infra-estruturais, como a introdução do transporte público fluvial e a disseminação de diferentes tipos de máquina.
Todos os aspectos até aqui mencionados representam apenas uma pequena amostra do volume de informações e reflexões contidas no livro de João Daniel. A sua reedição é mais do que bem-vinda neste momento em que tantos estão buscando entender melhor o universo amazônico e encontrar formas benéficas, sustentáveis e não-destrutivas para a sua ocupação socioeconômica. Um esforço que, ao menos até agora, tem sido marcado por fracassos. E uma das causas desse insucesso é justamente a falta de uma visão histórica mais profunda, que possa embasar a formulação de políticas públicas amplas, realistas e consistentes para aquela macrorregião.
Por esse mesmo motivo, podemos esperar que no futuro tenhamos uma edição crítica e anotada desse documento inestimável. A presente edição, apesar de bem cuidada do ponto de vista da transcrição do manuscrito original, está longe de ser definitiva. Uma providência importante, que já deveria estar presente nesta edição, seria a inclusão de índices detalhados que facilitassem a sua consulta. Ou seja, muito ainda falta fazer para que possamos valorizar plenamente esse tesouro da literatura colonial brasileira.

José Augusto Pádua é professor do Departamento de História da UFRJ e autor do livro "Um Sopro de Destruição: Pensamento Político e Crítica Ambiental no Brasil Escravista"


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