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Nina Horta

Acabaram as avós dona Benta

Deixei o cabelo branquear e adoro coque, o que me põe no rol das velhas, mas não das fritadeiras de bolinhos

Comecei a ler uma resenha nova do meu livro "Não é sopa", bem escrita, até quando o autor começou a me chamar de dona Benta. Não a do Monteiro Lobato, a outra, do livro grosso de receitas.

Fui ficando com ódio.

Foi publicado em 1995... Qual dona Benta qual nada, bonita, moça, viajando por São Paulo, Nova York, Paris, Londres, vestida por Ossie Clark, minissaia, mechinhas no cabelo, a nouvelle cuisine começando a arrebentar aqui, as experimentações, as novidades, as terrines, a bela apresentação do prato, Londres desfilando a mais jovem das modas pelas ruas, a comida de Jean Pierre White, Alastair Little, Bocuse já com 25 anos de trabalho!

Bem, pigarreei. Isso me parece ontem, mas provavelmente esse rapaz que escreveu não havia nascido.

O que não me torna dona Benta. Acabaram as avós dona Benta, se um dia existiram. Enfiem isso na cabeça, crianças. Nem as minhas avós eram donas Benta, senhoras mais compostas do que eu, sim, mas nenhuma das duas fazendo bolinhos de chuva para os netos, à tarde.

Uma delas cozinhava muito bem, mas sem grandes emoções, logo ficava livre para dar uns giros. A outra, protegida avó, me deixou de herança seu pilão de moer amêndoas, só dela, para doces que fazia numa cozinha só sua, escondida de todos. Escondidíssima, mesmo, jamais alguém a viu fazendo os tais de doces, e muito menos os doces.

Deixei o cabelo branquear, adoro um coque, o que me põe imediatamente no rol das velhas, mas não das fritadeiras de bolinhos. Por favor, não gosto que me chamem de dona Benta, entenderam? Não gosto e pronto.

O epíteto leva a pensar numa pessoa boa, amorosa, que só pensa nos outros, submissa ao marido e aos filhos, sem interesses a não ser os bifes acebolados, com o coração apertado por não ter sido secretária de alguma presidência. Arre! Seria mentira.

Mas... É aí que o resenhista que me chamou de dona Benta viu através dos véus. Posso ter ficado moderna em tudo, posso ter usado um salto 15 do Manolo Blahnik, rodopiado com as sainhas da Mary Quant, mas ninguém me convence que não existe uma coisa, uma essência, chamada mulher, que tem prazer de ficar em casa. Que pode carregar pedra, acho besta esse assunto que a capacidade de um gênero é diferente da do outro. Tudo igual. Mas, as melhores teorias caem por terra quando, no meio de um trabalho insano, minhas mãos começam a coçar para pegar um tricô. "Já vou, só acabar essa carreirinha aqui!", é a frase que mais tenho vontade de gritar. Fala, Adélia Prado!

"Há mulheres que dizem: Meu marido, se quiser pescar, pesque, mas que limpe os peixes. Eu não. A qualquer hora, me levanto, ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.

É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, de vez em quando os cotovelos se esbarram, ele fala coisas como este foi difícil', prateou no ar dando rabanadas' e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez, atravessa a cozinha como um rio profundo.

Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir. Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva."

É isso.

ninahorta@uol.com.br

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ninahorta.blogfolha.uol.com.br


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