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EM TRANSE
Para Michael Pettis, o alto endividamento da América Latina impedirá que a recuperação global chegue à região
Brasil terá mais turbulência, diz economista
Ali Burafi/France Presse
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Argentinos pedem a devolução dos depósitos bancários em dólares, em Buenos Aires; crise no país estourou em dezembro de 2001 |
ÉRICA FRAGA
DA REPORTAGEM LOCAL
A fragilidade da dívida pública
brasileira fará com que o país volte a ser vítima de crises financeiras. A opinião é do economista
Michael Pettis, especialista em dívidas e países emergentes.
Pettis, que trabalhou no mercado financeiro por 15 anos, é professor da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Em 2001,
ele deixou o banco de investimentos Bear Stearns, atualmente passa uma temporada na Universidade de Tsinghua, na China, onde
faz pesquisa.
Pettis, que escreve com frequência para o jornal inglês "Financial
Times", é autor do livro "The Volatility Machine: Emerging Economies and the Threat of Financial Collapse", lançado em 2001.
Segundo ele, o alto endividamento dos países da América Latina fará com que a recuperação
dos mercados globais passe ao
largo da região. "O capital não
gosta de países muito endividados", diz ele.
Folha - É possível mudar a estrutura das dívidas -que o senhor
aponta como principal causa de crises- de países emergentes?
Michael Pettis - Crises financeiras ocorrem quando uma estrutura de capital experimenta um
grande choque. Muitas coisas podem causar esses choques, mas é a
estrutura de capital de um país
que vai determinar o seu impacto
sobre a economia real. Isso depende da forma como as dívidas
estão indexadas e como afetam as
probabilidades de "default" [calote". No fim das contas, uma crise
financeira é apenas o resultado da
crença do mercado de que a probabilidade de calote aumentou
para um nível inaceitável.
Infelizmente, o "default" é provocado principalmente pela estrutura que torna uma dívida
muito volátil. Esse é o principal
problema do Brasil. A maior parte
da dívida brasileira é indexada ao
câmbio ou a taxas de juros de
muito curto prazo, de forma que
seus custos sobem sempre que
surgem notícias ruins na frente
política ou econômica.
Definitivamente, é possível um
país desenhar uma estrutura de
capital estável e segura, mas isso é
muito difícil de se fazer quando o
risco de "default" já é muito alto.
O melhor período para se fazer isso é, paradoxalmente, quando todos pensam que não é necessário.
Por exemplo, o principal objetivo
de gerenciamento de dívidas de
qualquer governo deveria ser o
desenvolvimento de um mercado
de longo prazo para os bônus
emitidos em sua própria moeda.
Isso é algo que o Brasil poderia ter
iniciado entre 1996 e 1998, mas
provavelmente não pode mais fazer hoje, a não ser que ocorra uma
reestruturação forçada da dívida
interna.
Países como Polônia, África do
Sul e China têm sido bastante
bem-sucedidos na reestruturação
de suas estruturas de capital.
Fazer uma reestruturação correta, no entanto, requer um entendimento claro sobre o funcionamento das folhas de balanços
-como transmitem volatilidade,
como distribuem ganhos e perdas- e isso é algo que a maior
parte dos economistas parece não
ter aprendido.
Folha - Tentativas de se mudar a
estrutura de um dívida não podem
ser vistas como "default"?
Pettis - Bem, na verdade, isso é
uma espécie de "default". Não há
dúvida de que uma reestruturação forçada é custosa no médio e
longo prazos e prejudicará a habilidade de um país de levantar recursos no futuro. Não é necessariamente verdade, no entanto,
que as consequências de uma
reestruturação são sempre piores
para países em desenvolvimento.
Isso realmente depende de
quais são as consequências de não
se reestruturar. Quando a dívida
está seriamente impedindo o
crescimento econômico e é percebida pelo mercado como insustentável, então as chances de "default" são bastante altas de todo
jeito, e o custo de postergar uma
resolução para a crise pode ser
muito mais alto que o de uma
reestruturação.
Uma crise financeira é o resultado da crença do mercado de que a probabilidade de calote cresceu para um nível inaceitável
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Folha - Por que a crença de que
reformas macroeconômicas e fiscais seriam suficientes para "salvar" os mercados emergentes se
tornou tão disseminada?
Pettis - Reformas macroeconômicas e fiscais são a parte mais
importante do pacote de políticas
de qualquer país. Sem o conjunto
certo de políticas econômicas nenhum país pode crescer, não importa o quão bem administrada é
sua estrutura de capital. Mas é importante se entender que mesmo
as melhores políticas econômicas
não podem funcionar se a estrutura da dívida as impedem.
Eu acho que, frequentemente,
isso é mal entendido. Recentemente, por exemplo, eu me envolvi numa conversa com um analista de políticas do Congresso norte-americano que me disse que a
Argentina provou claramente que
as reformas que seguiu estavam
erradas. Como eu fui, por um longo tempo, um crítico de certas políticas adotadas na Argentina, ele
pensou que eu concordaria com
ele. Mas eu discordei totalmente.
Na verdade, eu suspeito que
muitas das reformas feitas pelo
governo argentino eram necessárias. O "default" na Argentina não
foi causado por reformas macroeconômicas mal feitas, mas porque
altos níveis de dívida externa somados a uma política monetária
muito pró-cíclica deixou o país
com um balanço financeiro que
não podia resistir a choques.
Se a Argentina tivesse se endividado menos e adotado uma estrutura de dívida mais segura, não teria dado o calote, e nós teríamos a
chance de ver se as políticas macroeconômicas e fiscais foram as
adequadas ou não.
Folha - A crise financeira recente
no Brasil teria sido evitada se as
eleições não tivessem causado tantas incertezas?
Pettis - Mesmo que não tivesse
havido as eleições, a crise aconteceria de qualquer maneira, mas
provavelmente em 2003. Lembre-se que, conforme a dívida cresce,
leva um tempo cada vez menor
para provocar um aumento nas
probabilidades de "default".
Nas minhas colunas de jornal,
eu tenho alertado, desde 2000,
que o Brasil teria uma crise em
2002 porque a incerteza normal
de um ano eleitoral faria a estrutura existente de dívida muito frágil. Mas, com o nível de endividamento crescendo inexoravelmente, o país se tornaria vulnerável de
qualquer forma. Por enquanto, os
mercados se estabilizaram, mas a
estrutura da dívida está mais vulnerável do que nunca e o nível de
endividamento ainda está crescendo, então não podemos ser
complacentes. A crise voltará.
Infelizmente, não havia muito a
ser feito. Em 1999, Armínio Fraga
e seu time herdaram uma estrutura de dívida que já era muito frágil
e fez com que, mesmo com todos
os seus talentos e esforços heróicos, ele não tivesse muita chance
de consertar o problema. Ele e seu
time têm feito um excelente trabalho, mas as cartas que lhe foram
dadas eram muito pobres para
permitir que ele ganhasse.
Folha - O senhor acredita que todo o sistema financeiro internacional precisa ser reformado?
Pettis - Eu acho que nós precisamos aprender como aplicar alguns princípios básicos de finanças na análise dos balanços financeiros dos países. Para ser sincero,
também acho que o FMI deveria
deixar o "negócio" de aconselhamento sobre políticas macroeconômicas.
Seu único objetivo deveria ser o
de minimizar o risco de contágio
financeiro e aconselhar os países
sobre as maneiras de se reduzir o
risco de "default" -isto é, combinar as funções de Banco Central
com as de uma agência de classificação de risco. Países, individualmente, deveriam assumir a tarefa
de decidir quais são as reformas
macroeconômicas e fiscais mais
adequadas para eles.
Folha - O senhor escreveu em
2001 que existiam razões para se
acreditar que continuaríamos a ter
boas condições de liquidez global
pelos próximos três ou cinco anos.
O que mudou?
Pettis - Na verdade, nada. Eu, na
verdade, estava argumentando,
quando escrevi o livro, que haviam razões estruturais para acreditarmos que poderíamos ver um
renascimento de liquidez na metade dessa década. Mas não podemos contar que isso dure. E os
países emergentes muito endividados não seriam capazes de se
beneficiar dessa liquidez. Meu objetivo principal era advertir que
momentos de liquidez global são
difíceis de se prever, e qualquer
estratégia econômica que dependa do acesso continuado a grandes quantias de recursos externos
está fadada a fracassar.
Mesmo que não tivesse havido a eleição [no Brasil], a crise aconteceria de qualquer maneira, mas neste ano
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Folha - Quais serão as principais
consequências dessa crise de liquidez para países emergentes?
Pettis - Eu não sou muito otimista em relação à América Latina. Eu não sei quando a liquidez
voltará, mas estou apostando que
quando voltar passará ao largo da
América Latina, da mesma forma
que ocorreu em meados da década de 80. O período entre 1984 e
1987 presenciou um aumento significativo de apetite por risco nos
Estados Unidos, que resultou numa expansão de liquidez que beneficiou o próprio mercado de
ações norte-americano, o mercado de "junk bonds" (títulos que
oferecem retorno e risco altos), os
países asiáticos com baixo nível
de endividamento -mesmo algumas economias muito fracas,
como Tailândia e Indonésia.
Mas esse excesso de recursos
evitou os países endividados da
América Latina, Leste Europeu e
partes da Ásia que, na verdade,
sofreram fuga de capitais. O capital não gosta de países muito endividados.
Infelizmente, parece que nós estamos seguindo a mesma política
sugerida pelo Plano Baker nos
anos 80, pela qual fingimos que
estamos vivendo um problema de
liquidez de curto prazo e continuamos rolando as dívidas. Esse
tipo de política vai, com certeza,
garantir que nenhum capital novo vá para a América Latina. É claro que minha análise mudará se
os países latino-americanos decidirem perseguir, agressivamente,
políticas de redução de dívida,
não num espírito de confrontação
e retórica contrária ao mercado,
mas, racionalmente, e com uma
estratégia clara de, no fim das
contas, voltar ao mercado.
Folha - O que é menos pior para o
Brasil: reestruturar sua dívida ou
aumentar o superávit primário?
Pettis - Pelo que ouço de meus
amigos brasileiros, é improvável
que ocorra uma reestruturação
nos próximos seis meses. Nesse
caso, a única opção é continuar
tentando aumentar o superávit
primário na esperança de que notícias boas -como uma maior recuperação da economia mundial
combinada com uma volta do
apetite global por risco- consigam incentivar a confiança e abrir
caminho para uma queda de taxas [juros". Se essas taxas caírem o
bastante, a combinação de um
custo menor de rolagem da dívida
e um maior superávit primário
podem convencer investidores de
que a dívida é sustentável.
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