São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

EM TRANSE

Para Michael Pettis, o alto endividamento da América Latina impedirá que a recuperação global chegue à região

Brasil terá mais turbulência, diz economista

Ali Burafi/France Presse
Argentinos pedem a devolução dos depósitos bancários em dólares, em Buenos Aires; crise no país estourou em dezembro de 2001


ÉRICA FRAGA
DA REPORTAGEM LOCAL

A fragilidade da dívida pública brasileira fará com que o país volte a ser vítima de crises financeiras. A opinião é do economista Michael Pettis, especialista em dívidas e países emergentes.
Pettis, que trabalhou no mercado financeiro por 15 anos, é professor da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Em 2001, ele deixou o banco de investimentos Bear Stearns, atualmente passa uma temporada na Universidade de Tsinghua, na China, onde faz pesquisa.
Pettis, que escreve com frequência para o jornal inglês "Financial Times", é autor do livro "The Volatility Machine: Emerging Economies and the Threat of Financial Collapse", lançado em 2001.
Segundo ele, o alto endividamento dos países da América Latina fará com que a recuperação dos mercados globais passe ao largo da região. "O capital não gosta de países muito endividados", diz ele.

Folha - É possível mudar a estrutura das dívidas -que o senhor aponta como principal causa de crises- de países emergentes?
Michael Pettis -
Crises financeiras ocorrem quando uma estrutura de capital experimenta um grande choque. Muitas coisas podem causar esses choques, mas é a estrutura de capital de um país que vai determinar o seu impacto sobre a economia real. Isso depende da forma como as dívidas estão indexadas e como afetam as probabilidades de "default" [calote". No fim das contas, uma crise financeira é apenas o resultado da crença do mercado de que a probabilidade de calote aumentou para um nível inaceitável.
Infelizmente, o "default" é provocado principalmente pela estrutura que torna uma dívida muito volátil. Esse é o principal problema do Brasil. A maior parte da dívida brasileira é indexada ao câmbio ou a taxas de juros de muito curto prazo, de forma que seus custos sobem sempre que surgem notícias ruins na frente política ou econômica.
Definitivamente, é possível um país desenhar uma estrutura de capital estável e segura, mas isso é muito difícil de se fazer quando o risco de "default" já é muito alto. O melhor período para se fazer isso é, paradoxalmente, quando todos pensam que não é necessário. Por exemplo, o principal objetivo de gerenciamento de dívidas de qualquer governo deveria ser o desenvolvimento de um mercado de longo prazo para os bônus emitidos em sua própria moeda. Isso é algo que o Brasil poderia ter iniciado entre 1996 e 1998, mas provavelmente não pode mais fazer hoje, a não ser que ocorra uma reestruturação forçada da dívida interna.
Países como Polônia, África do Sul e China têm sido bastante bem-sucedidos na reestruturação de suas estruturas de capital.
Fazer uma reestruturação correta, no entanto, requer um entendimento claro sobre o funcionamento das folhas de balanços -como transmitem volatilidade, como distribuem ganhos e perdas- e isso é algo que a maior parte dos economistas parece não ter aprendido.

Folha - Tentativas de se mudar a estrutura de um dívida não podem ser vistas como "default"?
Pettis -
Bem, na verdade, isso é uma espécie de "default". Não há dúvida de que uma reestruturação forçada é custosa no médio e longo prazos e prejudicará a habilidade de um país de levantar recursos no futuro. Não é necessariamente verdade, no entanto, que as consequências de uma reestruturação são sempre piores para países em desenvolvimento.
Isso realmente depende de quais são as consequências de não se reestruturar. Quando a dívida está seriamente impedindo o crescimento econômico e é percebida pelo mercado como insustentável, então as chances de "default" são bastante altas de todo jeito, e o custo de postergar uma resolução para a crise pode ser muito mais alto que o de uma reestruturação.


Uma crise financeira é o resultado da crença do mercado de que a probabilidade de calote cresceu para um nível inaceitável

Folha - Por que a crença de que reformas macroeconômicas e fiscais seriam suficientes para "salvar" os mercados emergentes se tornou tão disseminada?
Pettis -
Reformas macroeconômicas e fiscais são a parte mais importante do pacote de políticas de qualquer país. Sem o conjunto certo de políticas econômicas nenhum país pode crescer, não importa o quão bem administrada é sua estrutura de capital. Mas é importante se entender que mesmo as melhores políticas econômicas não podem funcionar se a estrutura da dívida as impedem.
Eu acho que, frequentemente, isso é mal entendido. Recentemente, por exemplo, eu me envolvi numa conversa com um analista de políticas do Congresso norte-americano que me disse que a Argentina provou claramente que as reformas que seguiu estavam erradas. Como eu fui, por um longo tempo, um crítico de certas políticas adotadas na Argentina, ele pensou que eu concordaria com ele. Mas eu discordei totalmente.
Na verdade, eu suspeito que muitas das reformas feitas pelo governo argentino eram necessárias. O "default" na Argentina não foi causado por reformas macroeconômicas mal feitas, mas porque altos níveis de dívida externa somados a uma política monetária muito pró-cíclica deixou o país com um balanço financeiro que não podia resistir a choques.
Se a Argentina tivesse se endividado menos e adotado uma estrutura de dívida mais segura, não teria dado o calote, e nós teríamos a chance de ver se as políticas macroeconômicas e fiscais foram as adequadas ou não.

Folha - A crise financeira recente no Brasil teria sido evitada se as eleições não tivessem causado tantas incertezas?
Pettis -
Mesmo que não tivesse havido as eleições, a crise aconteceria de qualquer maneira, mas provavelmente em 2003. Lembre-se que, conforme a dívida cresce, leva um tempo cada vez menor para provocar um aumento nas probabilidades de "default".
Nas minhas colunas de jornal, eu tenho alertado, desde 2000, que o Brasil teria uma crise em 2002 porque a incerteza normal de um ano eleitoral faria a estrutura existente de dívida muito frágil. Mas, com o nível de endividamento crescendo inexoravelmente, o país se tornaria vulnerável de qualquer forma. Por enquanto, os mercados se estabilizaram, mas a estrutura da dívida está mais vulnerável do que nunca e o nível de endividamento ainda está crescendo, então não podemos ser complacentes. A crise voltará.
Infelizmente, não havia muito a ser feito. Em 1999, Armínio Fraga e seu time herdaram uma estrutura de dívida que já era muito frágil e fez com que, mesmo com todos os seus talentos e esforços heróicos, ele não tivesse muita chance de consertar o problema. Ele e seu time têm feito um excelente trabalho, mas as cartas que lhe foram dadas eram muito pobres para permitir que ele ganhasse.

Folha - O senhor acredita que todo o sistema financeiro internacional precisa ser reformado?
Pettis -
Eu acho que nós precisamos aprender como aplicar alguns princípios básicos de finanças na análise dos balanços financeiros dos países. Para ser sincero, também acho que o FMI deveria deixar o "negócio" de aconselhamento sobre políticas macroeconômicas.
Seu único objetivo deveria ser o de minimizar o risco de contágio financeiro e aconselhar os países sobre as maneiras de se reduzir o risco de "default" -isto é, combinar as funções de Banco Central com as de uma agência de classificação de risco. Países, individualmente, deveriam assumir a tarefa de decidir quais são as reformas macroeconômicas e fiscais mais adequadas para eles.

Folha - O senhor escreveu em 2001 que existiam razões para se acreditar que continuaríamos a ter boas condições de liquidez global pelos próximos três ou cinco anos. O que mudou?
Pettis -
Na verdade, nada. Eu, na verdade, estava argumentando, quando escrevi o livro, que haviam razões estruturais para acreditarmos que poderíamos ver um renascimento de liquidez na metade dessa década. Mas não podemos contar que isso dure. E os países emergentes muito endividados não seriam capazes de se beneficiar dessa liquidez. Meu objetivo principal era advertir que momentos de liquidez global são difíceis de se prever, e qualquer estratégia econômica que dependa do acesso continuado a grandes quantias de recursos externos está fadada a fracassar.


Mesmo que não tivesse havido a eleição [no Brasil], a crise aconteceria de qualquer maneira, mas neste ano


Folha - Quais serão as principais consequências dessa crise de liquidez para países emergentes?
Pettis -
Eu não sou muito otimista em relação à América Latina. Eu não sei quando a liquidez voltará, mas estou apostando que quando voltar passará ao largo da América Latina, da mesma forma que ocorreu em meados da década de 80. O período entre 1984 e 1987 presenciou um aumento significativo de apetite por risco nos Estados Unidos, que resultou numa expansão de liquidez que beneficiou o próprio mercado de ações norte-americano, o mercado de "junk bonds" (títulos que oferecem retorno e risco altos), os países asiáticos com baixo nível de endividamento -mesmo algumas economias muito fracas, como Tailândia e Indonésia.
Mas esse excesso de recursos evitou os países endividados da América Latina, Leste Europeu e partes da Ásia que, na verdade, sofreram fuga de capitais. O capital não gosta de países muito endividados.
Infelizmente, parece que nós estamos seguindo a mesma política sugerida pelo Plano Baker nos anos 80, pela qual fingimos que estamos vivendo um problema de liquidez de curto prazo e continuamos rolando as dívidas. Esse tipo de política vai, com certeza, garantir que nenhum capital novo vá para a América Latina. É claro que minha análise mudará se os países latino-americanos decidirem perseguir, agressivamente, políticas de redução de dívida, não num espírito de confrontação e retórica contrária ao mercado, mas, racionalmente, e com uma estratégia clara de, no fim das contas, voltar ao mercado.

Folha - O que é menos pior para o Brasil: reestruturar sua dívida ou aumentar o superávit primário?
Pettis -
Pelo que ouço de meus amigos brasileiros, é improvável que ocorra uma reestruturação nos próximos seis meses. Nesse caso, a única opção é continuar tentando aumentar o superávit primário na esperança de que notícias boas -como uma maior recuperação da economia mundial combinada com uma volta do apetite global por risco- consigam incentivar a confiança e abrir caminho para uma queda de taxas [juros". Se essas taxas caírem o bastante, a combinação de um custo menor de rolagem da dívida e um maior superávit primário podem convencer investidores de que a dívida é sustentável.



Texto Anterior: Mercados e serviços: IPVA começa a vencer quarta-feira em SP
Próximo Texto: Trecho
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.