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FERREIRA GULLAR
De susto em susto
Já nasci no meio da encrenca: a
Revolução de 1930. Morávamos a duas quadras do quartel do
Exército, na rua dos Prazeres, em
São Luís do Maranhão, numa
porta-e-janela. Minha mãe punha o meu berço no chão para
evitar que alguma bala perdida
me atingisse. Terá sido meu primeiro susto.
Dois anos depois, São Paulo se
subleva e muito nordestino foi
convocado para vir abafar a revolta paulista. Em 1935, são os comunistas que tentam tomar o poder na famosa Intentona, que resultou em prisões em massa. Em
1937, o golpe de Getúlio para instituir o Estado Novo, de viés facistóide. Prisões, torturas, censura,
perseguições. Dois anos depois, a
Alemanha invade a Polônia,
dando início à Segunda Guerra
Mundial. Lembro-me da manchete de um jornal em letras garrafais: "Começou a guerra". Mal
sabia onde ficavam a Alemanha e
a Polônia, mas a palavra guerra
me assustava. Pior foi quando,
em 1942, o rádio na sala anunciou, pela voz de Getúlio Vargas,
que o Brasil declarara guerra à
Alemanha. Meu coração começou a bater acelerado, fui para a
rua achando que, a qualquer momento, cairiam bombas sobre o
telhado de nossa casa. Na quitanda de meu pai, as conversas eram
sobre a luta no front, enquanto o
rádio em cima do balcão transmitia as notícias. As descargas da
transmissão soavam como tiros
de metralhadoras e fuzis. Na minha ignorância assustada, a Europa ficava ali perto, logo depois
do horizonte.
Um dia, os alemães afundaram
um navio brasileiro cheio de passageiros. Vinha nele uma moça
maranhense, cujo pai, um negro,
revoltado, matou a facadas o velho italiano que vendia jornais
numa banca na praça João Lisboa. Mais um susto.
Finalmente veio a paz que foi
festejada nas ruas. Logo, porém,
começou outra guerra, a fria, com
a ameaça de uma hecatombe nuclear. Um pesadelo. Lia nos jornais que famílias americanas ricas já construíam aposentos subterrâneos com todo tipo de suprimento, refúgios contra a guerra
atômica. Quando os americanos
descobriram que havia foguetes
soviéticos em Cuba, desatou-se
uma crise que quase leva o mundo ao apocalipse nuclear. Foi um
sufoco. Nosso grupo, na sede de
UNE, escutava as notícias com
olhar de pavor. Que susto!
Mas esse não foi maior que o de
agosto de 1954, quando Getúlio
Vargas suicidou-se no Palácio do
Catete, a poucas esquinas da pensão de dona Adélia, onde eu morava. Foi por volta das oito e meia
da manhã. Eu estava no boteco,
quase em frente ao Catete, tomando café, quando o "Repórter
Esso" deu a notícia. O pessoal,
que até ali pichava Getúlio, ficou
mudo. Então alguém gritou:
"Mataram o velhinho!". A reação
foi a mesma em toda a cidade, em
todo o país. Em breve a multidão
furiosa quebrava o que encontrava pela frente.
No ano seguinte, Juscelino,
apoiado pelos getulistas, ganhou
as eleições para presidente da República. Uma facção das Forças
Armadas tentou impedir-lhe a
posse, mas o general Lott a garantiu. Empossado, ele enfrenta uma
rebelião de jovens oficiais da
FAB. Volta a tranqüilidade, Juscelino, para o desagrado de muita
gente, decide construir Brasília,
que, em 1960, é inaugurada. Vêm
as eleições para presidente, ganhas por Jânio Quadros, candidato da UDN que resolve condecorar Che Guevara para desagrado
da direita militar. Julgando-se
amado pelo povo, envia uma carta de renúncia ao Congresso na
suposição de que os parlamentares não teriam coragem de aceitá-la, mesmo porque o seu vice era
João Goulart, líder trabalhista,
odiado pelos militares. O Congresso aceita a renúncia e os militares se opõem à posse de Goulart.
Crise político-militar. Susto. Muda-se o regime presidencialista
para parlamentarista e Jango toma posse, mas será deposto dois
anos depois por aqueles mesmos
militares. Implantava-se a ditadura que duraria mais de 20
anos, com perseguições, prisões,
torturas e assassinatos de militantes de esquerda, líderes operários, estudantis e de oposição ao
regime. Um susto cada vez que
soava a campainha da porta.
Diretas já. Eleições de Tancredo
Neves, que adoece e morre antes
de tomar posse. Assume José Sarney. Plano Cruzado, ruptura com
o FMI, greves sem parar. As primeiras eleições diretas para presidente da República: vence Fernando Collor, que sofrerá impeachment dois anos depois. Assume Itamar Franco, que lhe
completa o mandato. É eleito Fernando Henrique Cardoso, que
implanta o Plano Real e governa
por oito anos, sem sustos.
Em 2002, Lula candidata-se pela quarta vez à Presidência da República, ganha e assume prometendo acabar com a fome no país.
O susto que sua candidatura provocara se esvanece, tudo parece se
tranqüilizar quando o país sabe,
estarrecido, que o PT estava dando R$ 30 mil por mês a deputados
para trocarem de partido e apoiarem o governo. As peças começam
a se juntar, e o escândalo, a crescer. Cai José Dirceu, chefe da Casa
Civil; cai Sílvio Pereira, secretário-geral do PT; cai Delúbio Soares, o tesoureiro do partido; cai José Genoino, seu presidente. Malas
cheias de reais, milhares de dólares na cueca, empréstimos de milhões ao partido do governo. Até
parece a "farra do boi", de que falara o Lula, triatleta da ética.
De tédio não morreremos. Pode
ser que morramos de susto.
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