São Paulo, domingo, 07 de agosto de 2005

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FERREIRA GULLAR

De susto em susto

Já nasci no meio da encrenca: a Revolução de 1930. Morávamos a duas quadras do quartel do Exército, na rua dos Prazeres, em São Luís do Maranhão, numa porta-e-janela. Minha mãe punha o meu berço no chão para evitar que alguma bala perdida me atingisse. Terá sido meu primeiro susto.
Dois anos depois, São Paulo se subleva e muito nordestino foi convocado para vir abafar a revolta paulista. Em 1935, são os comunistas que tentam tomar o poder na famosa Intentona, que resultou em prisões em massa. Em 1937, o golpe de Getúlio para instituir o Estado Novo, de viés facistóide. Prisões, torturas, censura, perseguições. Dois anos depois, a Alemanha invade a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial. Lembro-me da manchete de um jornal em letras garrafais: "Começou a guerra". Mal sabia onde ficavam a Alemanha e a Polônia, mas a palavra guerra me assustava. Pior foi quando, em 1942, o rádio na sala anunciou, pela voz de Getúlio Vargas, que o Brasil declarara guerra à Alemanha. Meu coração começou a bater acelerado, fui para a rua achando que, a qualquer momento, cairiam bombas sobre o telhado de nossa casa. Na quitanda de meu pai, as conversas eram sobre a luta no front, enquanto o rádio em cima do balcão transmitia as notícias. As descargas da transmissão soavam como tiros de metralhadoras e fuzis. Na minha ignorância assustada, a Europa ficava ali perto, logo depois do horizonte.
Um dia, os alemães afundaram um navio brasileiro cheio de passageiros. Vinha nele uma moça maranhense, cujo pai, um negro, revoltado, matou a facadas o velho italiano que vendia jornais numa banca na praça João Lisboa. Mais um susto.
Finalmente veio a paz que foi festejada nas ruas. Logo, porém, começou outra guerra, a fria, com a ameaça de uma hecatombe nuclear. Um pesadelo. Lia nos jornais que famílias americanas ricas já construíam aposentos subterrâneos com todo tipo de suprimento, refúgios contra a guerra atômica. Quando os americanos descobriram que havia foguetes soviéticos em Cuba, desatou-se uma crise que quase leva o mundo ao apocalipse nuclear. Foi um sufoco. Nosso grupo, na sede de UNE, escutava as notícias com olhar de pavor. Que susto!
Mas esse não foi maior que o de agosto de 1954, quando Getúlio Vargas suicidou-se no Palácio do Catete, a poucas esquinas da pensão de dona Adélia, onde eu morava. Foi por volta das oito e meia da manhã. Eu estava no boteco, quase em frente ao Catete, tomando café, quando o "Repórter Esso" deu a notícia. O pessoal, que até ali pichava Getúlio, ficou mudo. Então alguém gritou: "Mataram o velhinho!". A reação foi a mesma em toda a cidade, em todo o país. Em breve a multidão furiosa quebrava o que encontrava pela frente.
No ano seguinte, Juscelino, apoiado pelos getulistas, ganhou as eleições para presidente da República. Uma facção das Forças Armadas tentou impedir-lhe a posse, mas o general Lott a garantiu. Empossado, ele enfrenta uma rebelião de jovens oficiais da FAB. Volta a tranqüilidade, Juscelino, para o desagrado de muita gente, decide construir Brasília, que, em 1960, é inaugurada. Vêm as eleições para presidente, ganhas por Jânio Quadros, candidato da UDN que resolve condecorar Che Guevara para desagrado da direita militar. Julgando-se amado pelo povo, envia uma carta de renúncia ao Congresso na suposição de que os parlamentares não teriam coragem de aceitá-la, mesmo porque o seu vice era João Goulart, líder trabalhista, odiado pelos militares. O Congresso aceita a renúncia e os militares se opõem à posse de Goulart. Crise político-militar. Susto. Muda-se o regime presidencialista para parlamentarista e Jango toma posse, mas será deposto dois anos depois por aqueles mesmos militares. Implantava-se a ditadura que duraria mais de 20 anos, com perseguições, prisões, torturas e assassinatos de militantes de esquerda, líderes operários, estudantis e de oposição ao regime. Um susto cada vez que soava a campainha da porta.
Diretas já. Eleições de Tancredo Neves, que adoece e morre antes de tomar posse. Assume José Sarney. Plano Cruzado, ruptura com o FMI, greves sem parar. As primeiras eleições diretas para presidente da República: vence Fernando Collor, que sofrerá impeachment dois anos depois. Assume Itamar Franco, que lhe completa o mandato. É eleito Fernando Henrique Cardoso, que implanta o Plano Real e governa por oito anos, sem sustos.
Em 2002, Lula candidata-se pela quarta vez à Presidência da República, ganha e assume prometendo acabar com a fome no país. O susto que sua candidatura provocara se esvanece, tudo parece se tranqüilizar quando o país sabe, estarrecido, que o PT estava dando R$ 30 mil por mês a deputados para trocarem de partido e apoiarem o governo. As peças começam a se juntar, e o escândalo, a crescer. Cai José Dirceu, chefe da Casa Civil; cai Sílvio Pereira, secretário-geral do PT; cai Delúbio Soares, o tesoureiro do partido; cai José Genoino, seu presidente. Malas cheias de reais, milhares de dólares na cueca, empréstimos de milhões ao partido do governo. Até parece a "farra do boi", de que falara o Lula, triatleta da ética.
De tédio não morreremos. Pode ser que morramos de susto.


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