São Paulo, quarta-feira, 10 de março de 2010

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MARCELO COELHO

Livros à solta


O velho se mistura ao novo, as ordens antigas se fundem às modernas e são reinterpretadas


PELO CALENDÁRIO judaico, rememorou-se na sexta-feira passada o episódio da adoração do Bezerro de Ouro. Furioso com a recaída de seu povo na idolatria, Moisés pegou as tábuas onde estavam inscritos os Dez Mandamentos e arrojou-as ao pé do Monte Sinai. Elas se partiram em pedaços.
Foi necessário talhar duas pedras novamente, para que a lei fosse refeita. Segundo certa tradição, parte das tábuas destruídas foi reaproveitada na fabricação das novas, como numa espécie de quebra-cabeças.
Espero que não me cobrem exatidão textual ou teológica. Reproduzo apenas o que ouvi de um rabino progressista. Mesmo quem não é profeta pode prever o ponto aonde o rabino queria chegar. Ainda que gravadas em pedra, as leis não foram feitas de uma vez por todas. O velho se mistura ao novo, as ordens antigas se fundem às modernas, são reinterpretadas, e evoluem.
Desse ponto de vista, a fúria de Moisés, a adoração do Bezerro de Ouro, e até, quem sabe, o evento trágico da Destruição do Templo (e sua reconstrução posterior) poderiam ser interpretados como etapas necessárias dentro do plano divino. Teriam o sentido de advertir contra os rigores de uma tradição imutável, ortodoxa, avessa à liberdade.
Fiquei pensando se o rabino não estava exagerando no seu progressismo. Afinal, se os Dez Mandamentos tinham sido gravados na pedra por um Deus coruscante de relâmpagos (era essa a minha lembrança do filme de Cecil B. de Mille), a coisa era séria demais para se procurar muita liberdade nas entrelinhas.
Mas o rabino reservava para o final da sua fala a grande surpresa interpretativa. Esclareceu que a palavra em hebraico para "gravar", ou "inscrever", não tem sentido unívoco. Corresponde tanto a "fixar" quanto a "liberar". Desse modo, quem fixa determinadas frases por escrito está ao mesmo tempo libertando-as; autoriza seu voo aos quatro ventos, livra-as do segredo e do silêncio.
Naquela sexta-feira, eu estava na Congregação Israelita Paulista para prestar homenagem ao bibliófilo José Mindlin, que havia morrido no domingo anterior, aos 95 anos.
Estive com José Mindlin poucas vezes, mas foi o bastante (e mesmo suas entrevistas na TV produziam essa impressão) para considerar um bocado incômoda a qualificação de "bibliófilo", que não se pode deixar de empregar aqui. Para mim, bibliófilo é um termo antipático ao extremo: traz uma imagem de exclusivismo, de atração pelo detalhe e pelo fetiche, de gasto supérfluo... Meu rabino interior, ou meu pastor protestante, que sei eu, balança a cabeça e franze o cenho diante da atividade.
José Mindlin era o contrário disso. Acima de tudo, a sua simplicidade pessoal, a sua ausência de vaidade eram absolutamente fora do comum. Se tinha uma biblioteca atulhada de livros raríssimos, isso parecia ter-lhe acontecido quase que circunstancialmente, em consequência de um hobby que perseguia sem voracidade.
O colecionador pode ser um neurótico, um ávido: "Nada faço sem alegria", afirmava entretanto o ex-libris de José Mindlin, tirado dos "Ensaios" de Montaigne. O rabino que falava sobre o Bezerro de Ouro e as tábuas de Moisés não fez nenhuma referência a José Mindlin. Seu elogio à renovação das tradições estava sendo feito, na verdade, a propósito do Dia da Mulher, a ser comemorado na segunda-feira seguinte. O objetivo era questionar a concepção ortodoxa do papel feminino na tradição religiosa.
Mas eu estava com o pensamento em José Mindlin, e a fala do rabino não deixou de se adequar à circunstância. A adoração dos livros raros, das edições inencontráveis, dos manuscritos preciosos... Não haveria algo de culto ao Bezerro de Ouro em tudo isso?
Boa idolatria, contudo, se com isso foi preservada uma coleção de livros que poderiam estar fora do país ou espandongados por aí, sem leitores nem conservação.
E, se "fixar" em hebraico tem o mesmo sentido de "liberar", se as palavras guardadas na pedra também estão soltas para todo mundo ler, a ideia não poderia traduzir melhor o fato de que a biblioteca de Mindlin tenha sido doada ao Instituto de Estudos Brasileiros da USP, estando disponível a quem quiser. O acervo já está, aliás, na internet: www.brasiliana.usp.br, e vale mais do que uma visita.

coelhofsp@uol.com.br


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