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Livros devolvem ex-tupamaro ao front

O uruguaio Carlos Liscano esteve preso dos 22 aos 35 anos de idade. No cárcere, foi de guerrilheiro tupamaro a escritor. Ao reconquistar a liberdade, em 1985, considerou-se deslocado num Uruguai democrático que se negava a investigar os crimes da ditadura militar (1973-1985) que o mantivera preso por tanto tempo. Fez então as malas e partiu.

A primeira opção era Curitiba, mas a ideia não vingou. Optou por um pouso mais distante e embarcou para a Suécia. Ali, inserido numa grande comunidade de exilados das ditaduras latino-americanas, passou mais de dez anos. Só em 1996 sentiu-se à vontade para voltar à terra natal.

Na última quarta-feira, Liscano recebeu a Folha para uma entrevista no histórico prédio da Biblioteca Nacional, da qual hoje é o diretor.

"A biblioteca me devolveu à política, mas por uma outra porta. Desde que entrei para o mundo dos livros, em 1981, quando escrevi meu primeiro romance dentro da cadeia, sabia que esse seria o meu foco de atuação no futuro", diz.

Liscano recorda celas escuras e a peleja com algozes para que lhe fornecessem papel, lápis e luz. Da insistência nasceu seu romance de estreia, "La Mansión del Tirano", que escreveu duas vezes, pois o primeiro manuscrito foi roubado e jogado no lixo pelos militares.

Trinta e dois anos depois, Liscano se transformou em autor de uma ampla obra de teatro, romances e ensaios sobre os tempos da ditadura. No Brasil, ainda não foi traduzido, mas na França tornou-se um escritor cultuado e tem suas peças encenadas, enquanto no Uruguai seus livros são disputados em sebos. Em Paris, ele acaba de publicar "Memórias de la Guerra Reciente" e "La Impunidad de los Verdugos" (a impunidade dos carrascos, em tradução livre).

Enquanto isso, a Universidade Federal de Santa Catarina escolheu "El Lector Salteado" (o leitor intermitente, em tradução livre)para lançar Liscano no mercado brasileiro. O próprio esteve no país, em abril passado, para uma tertúlia em torno de livros, política e memória com o escritor argentino Martín Kohan.

"O trânsito de livros na América Latina é muito falho. Aqui [no Uruguai] é difícil comprar livros colombianos, venezuelanos, mesmo argentinos. Os grandes selos monopolizam contratos por país e atravancam o intercâmbio. Com relação ao Brasil, há ainda o obstáculo da língua", observa.

Cortês e articulado, Liscano não se acanha em descrever o sofrimento nos anos de cárcere nem escamoteia seu inconformismo em relação a governos que, na visão dele, chancelaram a não investigação dos crimes de Estado --notadamente o de Julio Maria Sanguinetti, presidente entre 1985 e 1990, e novamente entre 1995 e 2000. "Sanguinetti protegeu os militares e encobriu os crimes deles. Foi o principal responsável pela defesa da anistia que faz com que até hoje a sociedade uruguaia não enfrente seu passado."

ANISTIA Para o escritor, José Pepe Mujica, atual presidente e companheiro de fileiras na guerrilha Tupamaros, também é indolente no que se refere à investigação de episódios de violência ocorridos durante o regime de exceção. A ditadura militar uruguaia é considerada responsável pelo desaparecimento de 174 pessoas.

Liscano deixa claro que não gosta do papel de oprimido. "Não sou uma vítima. Era guerrilheiro, portanto, responsável pela minha escolha. Há, sim, vítimas. Essas têm de ser compensadas pelos abusos da violência de Estado", diz, antes de comentar, não sem ironia, a incorporação da pauta dos direitos humanos à agenda da esquerda.

"Não era um assunto que estivesse em seu radar no fim dos anos 1970. O tema foi incorporado ao discurso esquerdista, mas na verdade surgiu nas comunidades no exílio e foi apenas absorvido pelos governantes da democracia. Não se trata de uma solicitação originária da esquerda revolucionária."

O autor é a favor da investigação dos crimes de Estado, mas reconhece que há pouco a fazer se boa parte da sociedade se opuser à revisão do passado. Atualmente, transcorre no Uruguai, tanto na esfera civil quanto no Congresso, um amplo debate sobre a necessidade de revogar ou não a lei de anistia promulgada em 1986.

Assim como a antropóloga argentina Pilar Calveiro (leia texto na página ao lado), Liscano acredita que o discurso dos direitos humanos precisa incluir reprimendas aos crimes cometidos na atualidade. "O que dizer dos mortos nos acidentes de trem na Argentina, por obra do narcotráfico no Brasil, nos tantos meninos e meninas abandonados em toda a América Latina?", provoca.


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