São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

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Teoria da adaptação

Só no século 16 o alemão veio a emprestar do latim e do francês a palavra "Toleranz". É por isso que entre nós o termo possuiu de imediato, no contexto do cisma da fé, o significado estrito de tolerância ["Duldsamkeit"] para com outras confissões religiosas. No curso dos séculos 16 e 17, a tolerância religiosa torna-se conceito jurídico. Os governos passam a promulgar os atos de tolerância, ordenando aos funcionários e a uma população ortodoxa o comportamento tolerante no trato com as minorias religiosas luteranas, huguenotes, papistas. Do ato legal que manda as autoridades tolerarem os heterodoxos resulta, em regra para a maioria da população, a imposição do comportamento tolerante perante os membros de uma comunidade religiosa até então oprimida ou perseguida.
Com mais nitidez que no alemão, na língua inglesa "tolerance" se distingue, enquanto disposição de conduta ou virtude, de "toleration", o ato de lei com que um governo preserva um exercício religioso mais ou menos irrestrito. Nós alemães referimos a expressão "Toleranz" às duas coisas: tanto à ordem jurídica assegurando a tolerância como à expectativa normativa de um relacionamento tolerante.
Ainda hoje o contexto político original não deixa de ecoar no uso comum do termo. Com "Toleranz" designamos não só uma disposição geral de tratar os outros ou os estrangeiros de forma paciente e tolerante. A expressão se refere muito mais à virtude política no relacionamento com cidadãos de procedência e modos diferentes. Assim, a tolerância é considerada hoje o componente central de uma cultura política liberal. Mas é claro que "Toleranz" não é o mesmo que a virtude do tratamento civil. Ela não deve ser confundida com a disposição para a cooperação e para o compromisso. Pois, em caso de conflito, a pretensão à verdade não é negociável com a pretensão do outro à verdade.
Só o componente da recusa das crenças diferentes torna necessária a tolerância. Não precisamos ser tolerantes se somos de todo modo indiferentes às concepções e às atitudes alheias, e menos ainda se apreciamos o conjunto de características desse "outro". A tolerância religiosa para com os heterodoxos se generalizou mais tarde, convertendo-se em tolerância política no sentido mais amplo para com os que pensam diferentemente; mas para ambos os casos é essencial o "componente da recusa" (Rainer Forst [filósofo alemão, autor de "Contextos da Justiça - Filosofia Política além do Liberalismo e do Comunitarismo", sem edição em português]).
Só se pode falar de tolerância quando os envolvidos apóiam sua recusa em uma diferença cognitiva entre convicções e atitudes que perdura de maneira racional. Obviamente, nem toda recusa é racional nesse sentido: "Se alguém rejeita seres humanos de cor de pele negra, não vamos exigir dele uma ‘tolerância para com os que têm uma aparência diferente’. (...) Pois nesse caso nós aceitaríamos seu prejuízo como um juízo ético, que é semelhante à recusa de uma religião diferente. Um racista não deve tornar-se tolerante, ele deve superar o seu racismo".
Nesses casos e em outros semelhantes, consideramos uma resposta adequada a crítica dos preconceitos e a luta contra a discriminação, ou seja, pela igualdade de direitos, e não absolutamente a exigência de "mais tolerância". Em relação aos heterodoxos e aos que pensam diferentemente, a questão da tolerância só se coloca após a eliminação dos preconceitos, por conta dos quais eles foram discriminados de início.
Mas o que nos autoriza a chamar de "preconceitos" as descrições que o fundamentalista religioso, o racista, o chauvinista sexual, o nacionalista radical ou o etnocêntrico xenófobo dão do outro? Nós nos permitimos hoje o discurso que estigmatiza fundamentalistas, racistas etc., à luz do critério igualitário e universalista da igualdade civil, mais precisamente sob o aspecto do reconhecimento de todos os cidadãos como membros "iguais" ou "de mesmo valor" da coletividade política.
Essa norma da inclusão completa de todos os cidadãos tem de ser reconhecida universalmente, antes que possamos exigir de nós tolerância recíproca. Somente esse critério, aceito em comum, da não-discriminação fornece para o tratamento tolerante dos cidadãos entre si as razões morais e constitucionais que sobrepujam as razões epistêmicas de uma recusa das convicções e das atitudes meramente toleradas do outro. Com base nessa concordância normativa, as contradições entre as imagens de mundo concorrentes que perduram na dimensão cognitiva podem ser neutralizadas na dimensão social da igualdade dos cidadãos.
As definições de tolerância religiosa encontradas na história dos conceitos nos oferece um fio condutor para a análise do papel pioneiro que o cisma da fé e o pluralismo religioso tiveram nas sociedades ocidentais, tanto na origem como na configuração consequente das democracias baseadas no Estado de direito.

Só uma fixação universalmente convincente do limite pode arrancar da tolerânicia o espinho da intolerância

Por um lado, as justificações filosóficas da tolerância religiosa nos séculos 16 e 17 abriram caminho para a secularização do Estado e para uma fundamentação secular da legitimação (2). Por outro, o Estado liberal requer da consciência religiosa uma adaptação cognitiva à moral dos direitos humanos (3). Sob os dois aspectos, a luta por tolerância religiosa torna-se o protótipo de um multiculturalismo corretamente compreendido e da coexistência em pé de igualdade de diversas formas de vida cultural dentro da mesma comunidade política (4).

De Espinosa e Locke a Pierre Bayle [1647-1706, filósofo francês] e Montesquieu, as fundamentações filosóficas da tolerância religiosa apontam para os governos absolutistas o caminho que vai do ato de lei autoritário, que determina de maneira unilateral a tolerância religiosa, a uma concepção que requer o reconhecimento recíproco das liberdades religiosas por parte dos próprios cidadãos.
A tolerância para com as minorias religiosas foi justificada inicialmente apenas de maneira pragmática (por ponderações mercantilistas ou para a conservação de "law and order"), de maneira legalista (porque crenças espontâneas escapam à coerção jurídica) ou epistemológica (por causa da falibilidade do espírito humano). Espinosa defende a liberdade do exercício religioso, com o olhar já voltado para o princípio da liberdade de consciência, de pensamento e de opinião, por razões morais, e Locke por razões ligadas aos direitos humanos. Mas só Pierre Bayle logra uma fundamentação rigorosamente universalista.
Ele inventa exemplos sempre novos para exortar seus oponentes intolerantes a adotar a perspectiva do outro e transferir os próprios critérios também aos antagonistas: "Se o mufti [autoridade islâmica] tiver de súbito o desejo de enviar aos cristãos alguns missionários, como aqueles que o papa envia para a Índia, e se nos surpreendermos então com que esses missionários turcos invadam nossas casas a fim de cumprir sua tarefa de missionários, não creio que estaremos autorizados a puni-los. Pois, se eles derem as mesmas respostas que os missionários cristãos no Japão, a saber: que eles vieram pelo ardor de tornar conhecida a verdadeira religião entre aqueles que ainda não a conhecem e cuidar da salvação de seus próximos, e se então enforcarmos esses turcos, não será realmente ridículo considerar vil que os japoneses venham a agir da mesma maneira?".
Bayle, nesse aspecto um precursor de Kant, pratica a adoção recíproca das perspectivas e insiste na universalização das "idéias" a cuja luz julgamos "a natureza da ação humana". Com base nesse reconhecimento recíproco das regras do trato tolerante, pode se dissolver também aquele paradoxo originário que havia levado Goethe a rejeitar a tolerância, tomando-a como uma benevolência arrogante e ofensiva. Todo ato de tolerância deve circunscrever um campo de características do que é aceitável e desse modo traçar ao mesmo tempo um limite para a tolerância. Não há inclusão sem exclusão. E enquanto essa delimitação é efetuada de forma autoritária, isto é, unilateral, permanece inscrita na tolerância a mácula da exclusão autoritária. Só uma fixação universalmente convincente do limite, o que requer de todos os envolvidos uma adoção recíproca de perspectivas, pode arrancar da tolerância o espinho da intolerância. Todos os que poderiam ser afetados pela práxis futura devem acordar livremente sobre as condições sob as quais querem exercer a tolerância recíproca.
Se a tolerância deve se livrar da suspeita da intolerância, então as próprias regras do trato tolerante precisam ser aceitas por razões convincentes em todos os aspectos. Por esse motivo, o paradoxo encontra a sua solução apenas no Estado constitucional democrático. Entre a liberdade religiosa e a democracia existe um nexo conceitual que explica por que aquela liberdade pôde desempenhar também o papel histórico de precursor da democracia.
De um lado, o cisma da fé e a querela religiosa privaram o Estado do fundamento legitimador de uma religião pública exclusiva e o confrontaram com a tarefa de se ajustar a um fundamento legitimador independente da religião. De outro lado, o alargamento da tolerância religiosa já continha a chave para a solução desse problema. O conteúdo universalista da exigência mútua de tolerância acena em todo caso na direção em que podia ser encontrada a nova e secular fonte da legitimação.
Como foi mostrado, uma tolerância religiosa exigida reciprocamente por todos se apóia em limites universalmente aceitáveis. Essa delimitação concordável só pode se realizar no modo de deliberações que exortam os envolvidos à adoção recíproca de perspectivas. A força que um semelhante discurso possui para fundar a legitimidade é generalizada e perenizada com o procedimento da formação democrática da vontade. De maneira tolerante, a tolerância religiosa só pode ser garantida por fim quando o direito à liberdade religiosa se deve a um ato de legislação que tem a seu favor, na qualidade de resultado de um procedimento legiferante deliberativo, a suposição da aceitabilidade racional.
continua...



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