São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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Elisete ou a eleitora de 16 anos


CINCO ESCRITORES E UMA CINEASTA IMAGINAM SITUAÇÕES INUSITADAS ENVOLVENDO UMA DAS FIGURAS MAIS ANÔNIMAS DE TODO O PROCESSO ELEITORAL


Sérgio Sant'Anna

Como primeiro mesário, ele foi o segundo a votar na sua seção eleitoral, logo após o presidente de mesa. Assim se liberavam logo para os trabalhos do dia. Mas acabou demorando na cabine um pouco mais de tempo do que seria de esperar de um votante tão experimentado, pois teve alguns momentos de indecisão quanto ao seu voto para presidente da República, antes de teclar os números do candidato do governo. Se perguntassem a ele, um homem de 57 anos, se não estava dando um voto conservador, ele talvez viesse com o argumento de que, num mundo globalizado, só tinham futuro os países que se adaptassem a um capitalismo ágil (ou seria selvagem?). E que não havia nada mais reacionário do que os antigos governos socialistas da Europa, que acabaram por decretar a própria falência. Mas teria a oposição brasileira de hoje algo a ver com esse mofo ideológico?
E fora ele mesmo, o segundo mesário, quem, enquanto estudante universitário -e de vez em quando se lembrava disso- conseguira conciliar, orgulhosamente, uma prática de poeta vanguardista (seu ídolo fora o russo Maiakóvski) com uma ideologia maoísta, que talvez pudesse ser mais exatamente expressa no filme "A Chinesa" [1967", de Godard. Agora, há quantos anos não escrevia poesia ou assistia a filmes de Godard? E ele não conseguia se livrar da sensação incômoda de que podia mesmo ter dado um voto conservador.
Ali sentado à mesa, recebendo os eleitores, notara que, por estarem em disputa vários cargos, havia filas maiores na zona eleitoral do que na última eleição. Mas havia na expressão da maioria das pessoas uma paciência sorridente, em algumas até próxima da euforia.
No meio da fila da sua seção, ele podia reconhecer vários rostos, de outras votações, só que sempre um pouco mais velhos, para não falar dos ausentes. E ele não pôde se livrar de outra sensação incômoda: a de que, passadas mais algumas eleições, um dos ausentes seria ele. Foi quando sua atenção se deixou atrair por uma mocinha linda, mulata, com uma aparência de criança, que sorria, encabulada, como se invadisse o mundo dos adultos. Usava uma calça jeans e uma camiseta branca com um coração vermelho estampado e também a inscrição: "Eu amo". Sem dizer o quê. Mas ele, o mesário, lembrou-se de um verso de Maiakóvski, que bem poderia estar inscrito numa camiseta: "É preciso arrancar alegria ao futuro" (do poema "A Sierguêi Iessiênin", em tradução de Haroldo de Campos).
Quando ele recolheu o título da moça, verificou que o seu nome era Elisete Ferreira da Silva e confirmou o que já presumia: ela mal havia completado 16 anos e, portanto, era votante por opção e não por obrigação. E ele pensou que havia uns poucos anos ela brincava de boneca e agora escolhia os governantes do país. Na hora de assinar na folha de votação o seu nome, Elisete tinha a mão um pouco trêmula, mas respirou fundo e apôs sua assinatura na página com uma letra firme e decidida. E depois deu sorriso radiante para ele, o primeiro mesário, que, por alguma razão, enrubesceu.
- Agora vá até ali à urna eletrônica e vote, Elisete, ele disse, carinhosamente. E teve o desejo, impossível de atender, de ir com ela e ver os seus votos, embora o de presidente da República ele até adivinhasse. Mais ainda do que isso, teve vontade de não ter votado ainda e de poder fazê-lo igual à Elisete. Afinal, nas próximas décadas, o Brasil seria cada vez mais dela e dos de sua geração. E quem sabe eles mudariam mesmo alguma coisa no país, afinados com os versos de Maiakóvski?

Sérgio Sant'Anna é escritor, autor de, entre outros, "Um Crime Delicado" (Companhia das Letras).


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