São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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"Detalhes de um Pôr-do-Sol" reúne contos escritos por Vladimir Nabokov durante seu exílio europeu nos anos de 1920

Um obsessivo zoológico de palavras

Reprodução
O escritor russo naturalizado americano Vladimir Nabokov (1899-1977)


Fábio de Souza Andrade
especial para a Folha

Como os quilos bem pesados dos feirantes brasileiros, as quatro coletâneas de contos que receberam sinal verde em vida do autor de "Lolita" e "Fogo Pálido" traziam "dúzias russas" ou "de Nabokov", todas engordadas por uma 13ª história. É o caso de "Detalhes de um Pôr-do-Sol e Outros Contos", edição americana de 1976, agora lançada no Brasil em ótima tradução (do inglês) de Jorio Dauster. O rascunho manuscrito dos títulos que fariam parte de um quinto volume (a "raspa do tacho", em suas palavras) orientou a escolha que Dmitri Nabokov, seu filho e tradutor, a quatro mãos ou solista, fez postumamente, para somar os 65 contos da edição reunida, de 1995. O narrador que sobrevive nos contos é o Nabokov do período de exílio voluntário europeu, escrevendo na língua materna, ainda sob o peso opressivo da riquíssima tradição ficcional russa, mergulhado nos círculos literários de expatriados em Berlim e Paris. A marca pessoal e o estilo próprio, contudo, não tardariam a repontar. Ter chamado de "Uma Fatia de Vida" uma das narrativas que compõem a coletânea corre por conta da ironia militante que, desde então, dedicava ao modelo realista -segundo ele, ao contrário de Flaubert, biscoito fino, Stendhal, Balzac e Zola não passavam de platitudes vulgares.

Episódios marcantes
É certo que o leitor de "Speak, Memory" (volume de memórias expurgado do acidental do dia-a-dia e da investigação de causas e efeitos entre fatos e feitos individuais, antes uma arqueologia do artista em formação, batizado na edição brasileira de "A Pessoa em Questão") reconhecerá em alguns contos, transpostos ao registro ficcional, episódios marcantes da infância aristocrática e da decisiva aproximação da escrita, em meio às convulsões das duas primeiras décadas do século passado em São Petersburgo. Assim, o menino de "Armoles" é um duplo do autor que, estranho no ninho na escola, se angustia na sala de aula com a perspectiva do pai se batendo em duelo; outro garoto descobre a inutilidade dos esforços gregários contra a irredutibilidade dos mundos individuais no piquenique infantil de "Um Mau Dia".

Trocas de endereço
Sem que houvesse separação nítida entre os assuntos domésticos e os de Estado, nos quais seu pai, jurista liberal, desempenhava papel de destaque (foi ministro do gabinete provisório de Kerenski), Nabokov experimentou no lance seguinte de sua vida as trocas de endereço, reuniões e separações reservadas aos russos emigrados (matéria de "O Reencontro", "A Campainha da Porta" ou "A Carta Que Nunca Chegou à Rússia").
Esses dois períodos-chave -a juventude russa e os anos passados em Paris e na Berlim dos anos 20- correspondem, grosso modo, àqueles em que estão ambientados os contos.
Mas sob essa coincidência epidérmica se entrevê o verdadeiro desenho que dá unidade às histórias: a certeza de que a experiência só passa a fazer sentido se filtrada pela linguagem da arte, expressa pela palavra exata, encapsulada na imagem inusitada. A referência flaubertiana não é vã; também há em Nabokov uma religião da arte, uma perícia em aprisionar a vida no "zoológico das palavras" quase insultuosa, de tão apurada. Suas várias versões do mesmo personagem fechado em universo próprio, excluído da normalidade por um traço obsessivo incomum, seja o xadrez, as borboletas ou os poemas, são reelaborações de uma matriz original insubstituível: a do artista que opõe resistência à anestesia do hábito e à esterilização da rotina.
Na brevidade das anotações do "Guia de Berlim", divididas em cinco microsseções ("Os Canos", "O Bonde", "Trabalho", "Éden" e "Um Botequim"), há um programa estético condensado.
Nele, o transitório sob máscaras múltiplas e em si desimportantes (manilhas de esgoto abandonadas na paisagem urbana, sob a neve; o bonde elétrico, último grito da modernidade, fadado à velhice prematura) se deixa apreender por um olhar que singulariza e preserva, intactos, na surpresa da forma que lhes confere, o jogo sensorial do instante da sua descoberta e a centelha de eternidade de que os inocula, transmutados em imagens, memória prévia e imperecível.
Nabokov encarna como poucos essa disponibilidade dos sentidos, a figura do artista como ser sem pálpebras, a serviço da metamorfose das impressões em linguagem aguda e reveladora. São esses momentos epifânicos, quando a consciência vacila e os detalhes ignorados à plena luz são despertados pelo lusco-fusco do fim do dia, que verdadeiramente interessam a sua escrita, de um cromatismo notável e vivacidade únicos.


Fábio de Souza Andrade é professor de teoria literária na USP e autor de "O Engenheiro Noturno" (Edusp), sobre a lírica de Jorge de Lima.


Detalhes de um Pôr-do-Sol e Outros Contos
176 págs., R$ 28,00 de Vladimir Nabokov. Tradução de Jorio Dauster. Cia. das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/ 3167-0801).



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