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O professor de filosofia e ex-trapezista Mário Bolognesi propõe uma história
do circo no Brasil e diz que o "show business" esvaziou a figura do palhaço
Os picadeiros da discórdia
Folha Imagem - 25.abr.2002
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Abelardo Pinto, o palhaço Piolim (1887-1973), que foi um dos nomes mais importantes da história do circo no Brasil
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Caio Caramico Soares
free-lance para a Folha
Em suas origens, na Roma Antiga, sua aura sagrada remontava a Circe, a bruxa que converteu os
companheiros de Ulisses em porcos. E desde então, por mais que tenha mudado, a arte circense
não perdeu seu perigoso fascínio, capaz de superar os limites humanos, na destreza dos acrobatas, e, pela figura
do palhaço, questionar os valores e costumes hegemônicos -como a "seriedade" e o sedentarismo que marcam o imaginário do Estado-nação brasileiro.
Essas são algumas das questões discutidas, na entrevista
abaixo, pelo professor de filosofia da Universidade Estadual Paulista e ex-trapezista Mário Fernando Bolognesi. Autor do recém-lançado "Palhaços" (ed. Unesp),
um estudo histórico, antropológico e filosófico, ele também rebate os vaticínios fellinianos sobre a decadência
do circo e de sua personagem cômica central, tão tradicional quanto enigmática.
O sr. afirma que um dos obstáculos da pesquisa foi a indisponibilidade de dados históricos e estudos acadêmicos sobre o circo no Brasil. Por que há essa escassez?
Não há, no Brasil, estudos sobre a história do circo
ou dos palhaços, e meu livro não vem suprir essa necessidade. É possível encontrar livros de memórias
de famílias, quase sempre baseadas no percurso de
seus membros, sem um referencial teórico e histórico preciso. Ou, então, encontram-se obras com material fotográfico razoável, porém sem os mesmos
referenciais que uma pesquisa requer.
Há, no entanto, obras, teses e monografias importantes que tratam do circo no Brasil, mas quase sempre no âmbito das ciências sociais, particularmente
da antropologia. Por outro lado, há obras que utilizam o circo como material empírico para a história
do país. Em resumo, não há, no Brasil, uma história
do circo, e parte dessa escassez se deve, de um lado,
ao relativo desinteresse da orientação geral da academia para assuntos "menores". De outro lado, há a dificuldade de reunir material empírico suficiente e
-mais grave ainda- de estabelecer critérios objetivos de uma história que consiga escapar do tom memorialista. Essa história está por ser feita.
Como sua experiência de trapezista se refletiu no livro?
Eu fazia trapézio em balanço e "duble" trapézio, no
espetáculo. Fora dele, havia a necessidade de se envolver em todos os aspectos que a vida circense requer. Isso deu conhecimento de técnicas de números, confecção de aparelhos, contato com a sociedade externa, de pessoas ligadas ao mundo circense e,
especialmente, de conhecer e conviver com bons palhaços, o que facilitou o reconhecimento de um linguajar específico, com termos que só o meio circense
domina. De certa forma, boa parte do repertório recolhido já era do meu conhecimento.
O sr. aponta uma disparidade entra a importância da figura do palhaço nos grandes circos, de um lado, e nos pequenos e médios, de outro. Por que isso acontece?
O grande circo, de base empresarial, com um espetáculo voltado para o "show business", privilegiou os
números chamados "sérios", como acrobacia, arame, trapézio, globo da morte, magia etc. Nesse espetáculo o palhaço não tem lugar de destaque.
Cabe-lhe cobrir o espaço que requer a montagem ou
desmontagem de grandes aparelhos. Além disso, o
uso da fala, no grande circo, fica bastante prejudicado e os palhaços, então, recorrem a reprises curtas,
com o mínimo de voz. No pequeno circo, ao contrário, o palhaço é o centro do espetáculo, porque de fato é ele quem traz uma novidade a cada dia. Os pequenos circos direcionam seu espetáculo para um
contingente pequeno de público, o que faz com que
a cada noite algo diferente seja apresentado, com vista a trazer de volta aquela pessoa que já esteve lá.
Como o nomadismo inerente às atividades circenses afetava o ideário da "nacionalidade" brasileira, em construção ao longo do século 19?
O livro da Regina Horta Duarte, "Noites Circenses"
(ed. Unicamp), trata especificamente dessa questão.
Simplificando bastante seu trabalho minucioso e riquíssimo, posso dizer que o nomadismo circense
veio problematizar o ideário da nacionalidade, em
um momento em que o Brasil queria se firmar como
nação, movido pelo impulso dos românticos. Esse
momento primou pela criação e formação da língua
e da literatura nacionais. Para se estabelecer enquanto nação havia a necessidade de o povo se identificar,
primeiramente, com o lugar onde mora. E o espetáculo e a vida circense apresentavam o lado oposto
dessa moeda, qual seja, o de se aventurar para todos
os lugares e não se firmar em nenhum.
Em que as características do palhaço brasileiro diferem,
historicamente, das do palhaço europeu?
É preciso ir com cuidado nessa resposta e eu falarei
exclusivamente em termos gerais. Em termos genéricos, o palhaço brasileiro ainda mantém aquela
qualidade agressiva e grotesca encontrada nos palhaços europeus -particularmente ingleses- do
século 19. No transcorrer do século 20, o palhaço foi
gradativamente perdendo espaço no espetáculo de
circo, tal como já apontei. Atualmente -se eu não
estiver enganado- o palhaço europeu (os franceses
em especial) enveredaram por um caminho lírico.
Hoje, o palhaço europeu é "cerebral", voltado ao
universo poético, enquanto o brasileiro é "corporal"
e se direciona ao universo do grotesco.
Há também uma outra característica: o palhaço europeu investiu na criação de entradas que
se fecham em si mesmas, ao passo que o brasileiro ainda explora a vivacidade do contato direto com o público, colocando-se integralmente no desafio do jogo cênico com a platéia.
Isso faz com que, em muitos casos, na improvisação, o palhaço se veja diante da necessidade de alterar o seu roteiro original. Isso, grosso
modo, não acontece com o europeu.
É inevitável, até pelo título do seu livro, a lembrança de "Os Palhaços" (1970), de Federico Fellini. O
sr. comunga da impressão de que esse filme transmite uma decadência irreversível da arte circense
na "sociedade do espetáculo"?
Apenas em parte. O filme do Fellini provocou
muitos protestos entre os circenses, inclusive
entre alguns dos que participaram do filme. A
nostalgia felliniana foi a principal tônica questionada, porque o diretor tinha em seu ideário
o circo de sua infância. Ora, o circo se transformou e está se transformando (eu não acredito
na morte do circo, como muitos proclamam).
Ele sempre dialogou com as outras formas de
espetáculo e sempre encontrou respostas para
as suas crises.
Outro aspecto interessante da visão felliniana do
circo, segundo reminiscências pessoais do diretor,
é o da mescla de fascínio e terror suscitada nele,
ainda criança, na primeira vez em que viu palhaços. Uma vez que o palhaço parece perder gradativamente seu público infantil nas grandes cidades,
ele poderá incorporar cada vez mais a dimensão sinistra ("adulta") de que fala Fellini?
Muitas crianças, em seu primeiro contato com
um palhaço, não acham nada engraçado. Elas
se assustam. Em outros momentos, elas terminam por rever interiormente essa primeira impressão. Mas o palhaço, por outro lado, não é
uma figura cômica que se direciona apenas à
criança. Ele fala também ao adulto e um bom
profissional sabe estabelecer corretamente as
fronteiras entre esses públicos. Isso induz a seleção do repertório e o modo de interpretar esse repertório.
Mas, há um outro lado dessa questão. O palhaço apresenta resquícios da agressividade do
velho Arlequim, que entre outras coisas provocava o terror em muitas pessoas -de certas
classes sociais, bem entendido. Ele, por exemplo, não aterrorizava os seus pares, serviçais
como ele. Aterrorizava, isso sim, o sovina Pantaleão, porque apresentava uma ameaça à sua
riqueza.
Ainda no terreno antropológico, o terror e o
medo que ainda estão presentes no palhaço
são ingredientes motivadores do riso. O terror
da máscara (que é morte) suscita o riso, que
por sua vez renasce como resposta para a superação do pânico. O riso é vida, é resposta humana e, portanto, é o oposto da máscara.
Palhaços
294 págs., R$ 29,00
de Mário Fernando Bolognesi. Ed. Unesp (praça da Sé, 108, CEP
01001-900, SP, tel. 0/xx/11/ 3242-7171).
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