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São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2003

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O professor de filosofia e ex-trapezista Mário Bolognesi propõe uma história do circo no Brasil e diz que o "show business" esvaziou a figura do palhaço

Os picadeiros da discórdia

Folha Imagem - 25.abr.2002
Abelardo Pinto, o palhaço Piolim (1887-1973), que foi um dos nomes mais importantes da história do circo no Brasil


Caio Caramico Soares
free-lance para a Folha

Em suas origens, na Roma Antiga, sua aura sagrada remontava a Circe, a bruxa que converteu os companheiros de Ulisses em porcos. E desde então, por mais que tenha mudado, a arte circense não perdeu seu perigoso fascínio, capaz de superar os limites humanos, na destreza dos acrobatas, e, pela figura do palhaço, questionar os valores e costumes hegemônicos -como a "seriedade" e o sedentarismo que marcam o imaginário do Estado-nação brasileiro. Essas são algumas das questões discutidas, na entrevista abaixo, pelo professor de filosofia da Universidade Estadual Paulista e ex-trapezista Mário Fernando Bolognesi. Autor do recém-lançado "Palhaços" (ed. Unesp), um estudo histórico, antropológico e filosófico, ele também rebate os vaticínios fellinianos sobre a decadência do circo e de sua personagem cômica central, tão tradicional quanto enigmática.

O sr. afirma que um dos obstáculos da pesquisa foi a indisponibilidade de dados históricos e estudos acadêmicos sobre o circo no Brasil. Por que há essa escassez?
Não há, no Brasil, estudos sobre a história do circo ou dos palhaços, e meu livro não vem suprir essa necessidade. É possível encontrar livros de memórias de famílias, quase sempre baseadas no percurso de seus membros, sem um referencial teórico e histórico preciso. Ou, então, encontram-se obras com material fotográfico razoável, porém sem os mesmos referenciais que uma pesquisa requer. Há, no entanto, obras, teses e monografias importantes que tratam do circo no Brasil, mas quase sempre no âmbito das ciências sociais, particularmente da antropologia. Por outro lado, há obras que utilizam o circo como material empírico para a história do país. Em resumo, não há, no Brasil, uma história do circo, e parte dessa escassez se deve, de um lado, ao relativo desinteresse da orientação geral da academia para assuntos "menores". De outro lado, há a dificuldade de reunir material empírico suficiente e -mais grave ainda- de estabelecer critérios objetivos de uma história que consiga escapar do tom memorialista. Essa história está por ser feita.

Como sua experiência de trapezista se refletiu no livro?
Eu fazia trapézio em balanço e "duble" trapézio, no espetáculo. Fora dele, havia a necessidade de se envolver em todos os aspectos que a vida circense requer. Isso deu conhecimento de técnicas de números, confecção de aparelhos, contato com a sociedade externa, de pessoas ligadas ao mundo circense e, especialmente, de conhecer e conviver com bons palhaços, o que facilitou o reconhecimento de um linguajar específico, com termos que só o meio circense domina. De certa forma, boa parte do repertório recolhido já era do meu conhecimento.

O sr. aponta uma disparidade entra a importância da figura do palhaço nos grandes circos, de um lado, e nos pequenos e médios, de outro. Por que isso acontece?
O grande circo, de base empresarial, com um espetáculo voltado para o "show business", privilegiou os números chamados "sérios", como acrobacia, arame, trapézio, globo da morte, magia etc. Nesse espetáculo o palhaço não tem lugar de destaque. Cabe-lhe cobrir o espaço que requer a montagem ou desmontagem de grandes aparelhos. Além disso, o uso da fala, no grande circo, fica bastante prejudicado e os palhaços, então, recorrem a reprises curtas, com o mínimo de voz. No pequeno circo, ao contrário, o palhaço é o centro do espetáculo, porque de fato é ele quem traz uma novidade a cada dia. Os pequenos circos direcionam seu espetáculo para um contingente pequeno de público, o que faz com que a cada noite algo diferente seja apresentado, com vista a trazer de volta aquela pessoa que já esteve lá.

Como o nomadismo inerente às atividades circenses afetava o ideário da "nacionalidade" brasileira, em construção ao longo do século 19?
O livro da Regina Horta Duarte, "Noites Circenses" (ed. Unicamp), trata especificamente dessa questão. Simplificando bastante seu trabalho minucioso e riquíssimo, posso dizer que o nomadismo circense veio problematizar o ideário da nacionalidade, em um momento em que o Brasil queria se firmar como nação, movido pelo impulso dos românticos. Esse momento primou pela criação e formação da língua e da literatura nacionais. Para se estabelecer enquanto nação havia a necessidade de o povo se identificar, primeiramente, com o lugar onde mora. E o espetáculo e a vida circense apresentavam o lado oposto dessa moeda, qual seja, o de se aventurar para todos os lugares e não se firmar em nenhum.

Em que as características do palhaço brasileiro diferem, historicamente, das do palhaço europeu?
É preciso ir com cuidado nessa resposta e eu falarei exclusivamente em termos gerais. Em termos genéricos, o palhaço brasileiro ainda mantém aquela qualidade agressiva e grotesca encontrada nos palhaços europeus -particularmente ingleses- do século 19. No transcorrer do século 20, o palhaço foi gradativamente perdendo espaço no espetáculo de circo, tal como já apontei. Atualmente -se eu não estiver enganado- o palhaço europeu (os franceses em especial) enveredaram por um caminho lírico. Hoje, o palhaço europeu é "cerebral", voltado ao universo poético, enquanto o brasileiro é "corporal" e se direciona ao universo do grotesco. Há também uma outra característica: o palhaço europeu investiu na criação de entradas que se fecham em si mesmas, ao passo que o brasileiro ainda explora a vivacidade do contato direto com o público, colocando-se integralmente no desafio do jogo cênico com a platéia. Isso faz com que, em muitos casos, na improvisação, o palhaço se veja diante da necessidade de alterar o seu roteiro original. Isso, grosso modo, não acontece com o europeu.

É inevitável, até pelo título do seu livro, a lembrança de "Os Palhaços" (1970), de Federico Fellini. O sr. comunga da impressão de que esse filme transmite uma decadência irreversível da arte circense na "sociedade do espetáculo"?
Apenas em parte. O filme do Fellini provocou muitos protestos entre os circenses, inclusive entre alguns dos que participaram do filme. A nostalgia felliniana foi a principal tônica questionada, porque o diretor tinha em seu ideário o circo de sua infância. Ora, o circo se transformou e está se transformando (eu não acredito na morte do circo, como muitos proclamam). Ele sempre dialogou com as outras formas de espetáculo e sempre encontrou respostas para as suas crises.

Outro aspecto interessante da visão felliniana do circo, segundo reminiscências pessoais do diretor, é o da mescla de fascínio e terror suscitada nele, ainda criança, na primeira vez em que viu palhaços. Uma vez que o palhaço parece perder gradativamente seu público infantil nas grandes cidades, ele poderá incorporar cada vez mais a dimensão sinistra ("adulta") de que fala Fellini?
Muitas crianças, em seu primeiro contato com um palhaço, não acham nada engraçado. Elas se assustam. Em outros momentos, elas terminam por rever interiormente essa primeira impressão. Mas o palhaço, por outro lado, não é uma figura cômica que se direciona apenas à criança. Ele fala também ao adulto e um bom profissional sabe estabelecer corretamente as fronteiras entre esses públicos. Isso induz a seleção do repertório e o modo de interpretar esse repertório. Mas, há um outro lado dessa questão. O palhaço apresenta resquícios da agressividade do velho Arlequim, que entre outras coisas provocava o terror em muitas pessoas -de certas classes sociais, bem entendido. Ele, por exemplo, não aterrorizava os seus pares, serviçais como ele. Aterrorizava, isso sim, o sovina Pantaleão, porque apresentava uma ameaça à sua riqueza. Ainda no terreno antropológico, o terror e o medo que ainda estão presentes no palhaço são ingredientes motivadores do riso. O terror da máscara (que é morte) suscita o riso, que por sua vez renasce como resposta para a superação do pânico. O riso é vida, é resposta humana e, portanto, é o oposto da máscara.


Palhaços
294 págs., R$ 29,00
de Mário Fernando Bolognesi. Ed. Unesp (praça da Sé, 108, CEP 01001-900, SP, tel. 0/xx/11/ 3242-7171).


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