São Paulo, domingo, 29 de fevereiro de 2004

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+ cultura

O FILÓSOFO PAUL RICOEUR FALA DE SEU RECÉM-LANÇADO "PERCURSO DO RECONHECIMENTO" E DIZ QUE A PROIBIÇÃO DE USO DO VÉU NAS ESCOLAS FRANCESAS FAVORECE A EXCLUSÃO

A EPOPÉIA DE UM SENTIDO

Roger-Pol Droit
do "Le Monde"

Reconhecer" é uma palavra de uso muito corrente. A dificuldade é que ela se diz em vários sentidos. Na língua francesa, o dicionário "Littré" distingue nada menos que... 23! Entre os mais usuais: ter no espírito a idéia de uma pessoa ou de uma coisa que já se encontrou ("eu o reconheci por sua voz"), autenticar o que jamais se viu ("no seu andar se reconhece uma deusa"), descobrir uma verdade ("reconheceram sua inocência"). Alguns usos são menos difundidos: tal filósofo reconhece a existência de átomos (ele a admite), tal pai reconhece um filho natural (ele marca a filiação). Há, por fim, sem equivalente em outras línguas, a passagem particular para o reconhecimento como gratidão, como sentimento que se experimenta em razão de benefícios recebidos de outrem.
A essa multiplicidade de significações, o "Robert" traz uma nova clareza, reduzindo a três principais as idéias ligadas ao termo: ligar imagens e percepções relativas a um objeto para distingui-lo; considerar como verdadeiro; testemunhar gratidão.


"Na voz ativa, "eu reconheço" corresponde a um ato do espírito no qual tenho uma espécie de controle sobre o uso, sobre o sentido; a necessidade de "ser reconhecido", na voz passiva, não é em absoluto a mesma coisa"


Esse termo de significações diversas, onipresente na linguagem comum, é muito discreto nas publicações filosóficas. Eis o que impressionou Paul Ricoeur e o conduziu a este novo trabalho ["Parcours de la Reconnaissance - Trois Études" [Percurso do Reconhecimento -Três Estudos, ed. Stock, 392 págs., 22 euros], de Paul Ricoeur. A teoria do conhecimento já suscitou bibliotecas inteiras. Mas uma teoria do reconhecimento ainda não existe. Seria possível constituí-la? É o reconhecimento um conceito ou apenas uma noção vaga? Pode-se justificar, por uma análise filosófica, a aparente disparidade dos sentidos usuais? Como se passa do discernimento à gratidão? Que ligações a questão do reconhecimento mantém com as da identidade, da memória, do desprezo, do amor?
A reflexão do filósofo se elabora a partir dessas interrogações. Seu resultado não é uma concepção sistemática. Ricoeur não propõe uma formalização dura, buscando antes destacar, de maneira refletida, a coerência de um movimento de sentido. Para chegar a isso, ele sugere, como indica o título, um percurso.
Três etapas-ou três planos- dividem esse novo itinerário filosófico de Ricoeur. O reconhecimento é primeiramente identificação. É uma maneira de distinguir, no fluxo permanente das aparências, a permanência de uma identidade, seja ela a de uma substância, de uma forma ou de um conceito. Os apoios da reflexão são aqui Descartes, que busca discernir o verdadeiro do falso, e Kant, que elabora a primeira teoria explicitamente dedicada à recognição.
Reconhecer é então reencontrar nos objetos ou nas pessoas os traços de uma consciência que os fazem familiares a nós. A ameaça pode vir do tempo e de seus danos, que tornam irreconhecíveis até mesmo rostos outrora amigos. Esse "mistério quase tão perturbador quanto o da morte", como diz Proust, inspira a Paul Ricoeur belas páginas dedicadas à leitura de "O Tempo Redescoberto".
O segundo momento do percurso conduz da identificação das coisas ao discernimento de sua própria identidade. Como reconhecer a si mesmo? A partir de quê? Segundo quais processos? Retomando os gregos, de Homero a Aristóteles, Ricoeur desenvolve uma rica e original análise da identidade concebida como capacidade. O que me define é aquilo de que sou capaz. É nisso que me reconheço e que me reconhecem, é o que posso contar de mim, é também o que define a dimensão ética de minha responsabilidade, do que me é imputável, do que posso prometer. Nessa questão da capacidade se inserem igualmente as práticas sociais e a constituição das identidades coletivas.
Resta o plano dedicado ao reconhecimento mútuo. Quero ser reconhecido, em minha identidade, pelo outro, que quer o mesmo de minha parte. Esse tema bem conhecido deve a Hegel sua elaboração mais importante. Muitas vezes, porém, essa luta pelo reconhecimento viu-se reduzida a um teatro de sombras abstratas e atemporais. O trabalho de Ricoeur consiste em restituir a essa análise sua atualidade, esclarecendo seus prolongamentos possíveis em nossa atualidade multicultural. Ele procura também temperar, se podemos dizer, o aspecto guerreiro dessa dialética. Nem todo reconhecimento resulta necessariamente de uma luta. O filósofo insiste na existência de momentos de "reconhecimento apaziguado", que passam pela dádiva, pela solidariedade, pela cultura da reciprocidade.
Evidentemente, este esboço é apenas o resumo de um livro muito denso, no qual se cruzam também referências a Bergson, a Hobbes e a vários contemporâneos, como Charles Taylor e Marcel Henaff. Há algumas ressonâncias de trabalhos anteriores de Ricoeur, mas a novidade prevalece, tanto nos temas quanto no seu tratamento. Para iniciar sua décima década, pode-se dizer que o pensador rejuvenesce.

Seu livro começa com uma leitura minuciosa dos dicionários "Littré" e "Grand Robert", no artigo "reconhecimento". É algo que não está em seus hábitos. Por que esse ponto de partida?
É a primeira vez, efetivamente, que coloco o problema da relação entre uma língua filosófica e a língua comum. De fato, não existe grande filosofia do reconhecimento, embora o termo seja corrente e dotado de uma pluralidade de sentidos. Sempre que empreendo um novo trabalho, sou tomado de uma espécie de obsessão. Desta vez, eu via a palavra "reconhecimento" em toda parte!... Fiquei impressionado ao notar que as entradas do termo "reconhecimento", nos dicionários, apresentem uma certa ordem, uma certa coerência lexical, que mantém juntas as definições sucessivas, ainda que o dicionário não explique transições entre essas acepções sucessivas.
Eu tinha então uma contribuição no léxico e também na gramática. Na voz ativa, "eu reconheço" corresponde a um ato do espírito no qual tenho uma espécie de controle sobre o uso, sobre o sentido. A necessidade de "ser reconhecido", na voz passiva, não é em absoluto a mesma coisa. Aos poucos fui descobrindo, ao fazer a ligação entre esses dois aspectos, o fio condutor fornecido pela questão da identidade. Reconhecer é primeiramente discernir uma identidade que se mantém ao longo das mudanças.

Entre essas mudanças, há o envelhecimento. Esse tema o conduz a Proust, o que tampouco é habitual!
Tive uma espécie de paixão súbita pelo jantar que Proust descreve em "O Tempo Redescoberto", porque ali nos vemos acossados pela idéia do irreconhecível. O irreconhecível aparece como o momento, subitamente trágico, de uma investigação até então tranqüila sobre a lógica do reconhecimento, da identificação, do discernimento. A figura da morte aparece aí. E, num mundo onde há o irreconhecível, o reconhecimento de si mesmo, dos outros, de uns pelos outros, torna-se a epopéia de um sentido.

Esse temor da morte não retorna em seguida, de modo diferente, com Hobbes e o estado de natureza?
O estado de natureza é um grande mito fundador, do qual a desconfiança constitui uma das paixões fundamentais. Sei que o outro tem os mesmos desejos que eu, e estamos em conflito; logo, estou sob a ameaça da morte violenta. Essa ameaça é o simétrico das faces irreconhecíveis que são, em Proust, a antecipação da morte. Mas, dessa vez, é o temor de morrer pela mão do outro, e essa outra face da morte é o homicídio. Insisto igualmente no fato de que um grande número de figuras contemporâneas do reconhecimento são oriundas de Hegel, de sua análise da luta pelo reconhecimento.
Creio, porém, que é abusivo encerrar inteiramente o problema do reconhecimento na questão da discriminação, das minorias oprimidas, das minorias étnicas, das mulheres etc., ainda que esse seja hoje o aspecto mais popular do tema. A questão da identidade reconhecida tem origens mais remotas.

O sr. a aborda ao tratar do multiculturalismo. O sr. pensa que um reconhecimento de várias identidades culturais seja possível no interior de um mesmo Estado?
Devo essa preocupação a Charles Taylor, em "Política do Reconhecimento". Trata-se de uma análise dedicada ao Québec, na qual se discutem também o feminismo norte-americano, as reivindicações dos índios, a questão das identidades lingüísticas. Todavia, no que diz respeito à França, creio que somos um dos países mais mal colocados para resolver esse problema com sucesso. De fato, temos uma tradição centralizadora e jacobina tão forte que ela tem uma grande dificuldade em introduzir a pluralidade.
Por outro lado, verifica-se que, entre as minorias problemáticas, temos as mais numerosas da Europa, a saber: o maior número de judeus e, de outro lado, um número considerável de muçulmanos. Portanto, temos de lidar com forças de dispersão opostas a uma tradição política de assimilação.
De minha parte, não me sinto à vontade na tradição jacobina. Por isso fui levado a tomar partido, com Monique Canto-Sperber (no "Le Monde" de 11/12/2003), contra o projeto de uma legislação que proíbe o véu islâmico nas escolas. Receio que essa lei crie exclusão, quando o objetivo é conduzir todos os jovens ao término de seus estudos.


"Quando leio um autor, creio nele, pertenço inteiramente a ele; é preciso habitá-lo! A seguir, a vida obriga a morar em várias casas"


Aqui, a filosofia anglo-saxônica usa preferencialmente um critério "conseqüencialista". Antes de qualquer decisão, convém perguntar quais seriam as conseqüências mais prováveis de uma escolha ou de outra sobre o comportamento dos interessados. Sem isso, reduzimo-nos aos princípios. Ora, nesse mesmo plano, seria preciso distinguir a laicidade de abstenção do Estado, que obriga os professores, e a laicidade de confronto benevolente, que deveria ser a da sociedade civil da qual os alunos procedem.

Sua reflexão não cessa de atravessar problemáticas muito diversas. Como qualificar sua relação com a biblioteca dos filósofos?
Sou um leitor há já... 70 anos! Minha biblioteca usual é portanto imensa. E, quando leio um autor, creio nele, pertenço inteiramente a ele. Torno-me Espinosa quando leio Espinosa. Esse hábito vem de muito longe. Quando eu era um jovem professor em Estrasburgo, em 1948, decidi ler um autor de cabo a rabo durante o ano, portanto viver num autor. Para ensinar bem um autor, é preciso habitá-lo! A seguir, a vida obriga a morar em várias casas. E não saio de uma dessas casas a não ser por uma espécie de violência. De repente, há uma passagem brusca de uma a outra. Mas um problema permanece: todas as filosofias podem ser verdadeiras ao mesmo tempo?

É possível fazê-las dialogar? Não são elas, na maior parte do tempo, incomensuráveis?
Observe como são nossos amigos na vida cotidiana. São absolutamente dessemelhantes. Temos afinidades, mas nossos caracteres diferem totalmente: as pessoas são insubstituíveis. Não vejo por que os filósofos escapariam a essa realidade. Com eles, atingimos um grau extremo de "insubstituibilidade". Não sou capaz de ir além dessa aporia. Vivo sucessivamente em universos filosóficos que têm graus diferentes de coerência interna, mas que estão em diálogo com outros ou a eles se opõem.

O senhor recusa então o relativismo?
Se tivesse que explicar minha visão de mundo, sobretudo em seus aspectos de engajamento prático, eu diria: dado o lugar onde nasci, a cultura que recebi, o que li, o que aprendi, o que concebi, existe para mim uma resultante que constitui, aqui e agora, a melhor coisa a fazer. Chamo-a a ação que convém... Eis aí um modelo prático que estendo à vida teórica: dado o que me tornei, há para mim um pensamento que convém. Relativo em relação a outros, ele constitui para mim um absoluto. A meu ver, a tranqüilidade, a modéstia tanto de pensamento como de ação consiste em dizer, como Lutero: "Aqui permaneço". Não se trata de perseguir a quimera de uma espécie de reconciliação universal, mas de ocupar bem meu lugar, em adequação ao que me é permitido e ao que me é pedido.

Onde encomendar
Livros em francês podem ser encomendados, em SP, à livraria Francesa (tel. 0/xx/11/3231-4555).


Tradução de Paulo Neves.


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