São Paulo, domingo, 29 de fevereiro de 2004

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+ literatura

O escritor alemão W.G. Sebald discute a importância da noção de memória em suas obras e explica por que usa fotografias em seus romances

Em busca do tempo destruído

Michaël Zeeman
especial para o "La Vanguardia"

A condição de emigrado impregnou a obra do escritor W.G. Sebald (1944-2001). Na entrevista a seguir, realizada pouco antes de sua morte e até agora inédita, o autor de "Os Emigrantes" e "Os Anéis de Saturno" (ambos pela Record) aborda várias questões relacionadas à memória, à língua e ao duvidoso estatuto documental da literatura realista.

O senhor é um escritor de origem alemã residente na Inglaterra, onde vive há bastante tempo. De onde procede o seu fascínio por emigrantes? É uma experiência pessoal transferida para a prática literária?
Provém de mais longe, embora esteja muito relacionado ao fato de que também deixei meu país quando tinha cerca de 21 anos. Comecei a estudar na Alemanha, mas logo depois parti para a Suíça, a parte francesa, um ambiente lingüístico diferente, e, depois de um ano e meio, fui para a Inglaterra. De todo modo, se retrocedermos mais, encontraremos outras referências históricas em minha família, as histórias de meus tios, que deixaram o sul da Baviera no final da década de 1920, na época da Grande Depressão, e foram para Nova York. Minha mãe foi a única de todos os irmãos que ficou na Alemanha.


Você ainda tem a possibilidade de utilizar alguns dos truques em que se baseiam as novelas policiais


Em 1933, ano em que os nazistas chegaram ao poder, eu ainda não estava suficientemente crescido para emigrar. Se Hitler tivesse surgido alguns anos depois, é provável que minha mãe tivesse acompanhado seus irmãos para Nova York e eu não tivesse nascido. Em todo caso, não com esta forma, estas dimensões ou esta figura. De modo que, por uma razão ou outra, trata-se de um tema muito próximo para mim. Além disso, de modo paradoxal, minhas duas irmãs tampouco vivem na Alemanha. Parece que temos a necessidade de nos expatriar sozinhos...

Daí vem seu interesse pelos emigrantes e por seu país e lugar de origem. O que obtém voltando às origens de seus personagens?
Por breve que seja o período que alguém passe no lugar de nascimento, mesmo que seja somente uma década, somente a infância, sempre fica. Creio que a paisagem original determina boa parte do caráter e a forma de reagir das pessoas. E me parece que essa marca nunca se perde. Quando você tem 22 anos e deixou seu país há apenas alguns anos, não sente saudade; no entanto pouco a pouco o sentimento vai se apoderando de você e, quanto mais se encolhe o horizonte do futuro, parece que mentalmente os contornos de seu lugar de origem vão adquirindo maior proeminência.

Alguns de seus personagens tentam desmentir suas origens ou mesmo escondê-las.
Sim, esse é o traço diferenciador entre minha experiência e a experiência da emigração judaica, da emigração forçada: a necessidade que muitos judeus sentiram de esconder suas origens e assim poder se integrar ao ambiente de acolhida. A tentativa de esconder ou disfarçar as origens me parece mais associada à comunidade judaica do que ao resto dos emigrantes alemães, como é meu caso.

De todo modo, o senhor tende a oferecer uma espécie de reflexo dessa tentativa de esconder as origens e o faz relacionando o presente ao passado.
É que levamos o passado conosco. Se alguém quer saber para onde vai, para onde é mais provável que vá, tem de conhecer as forças do passado. Estou convencido de que muita gente não percebe as pautas do passado, mas, se tiver certa educação e determinados conhecimentos sobre o que aconteceu na primeira metade do século 20 ou nos séculos 18 e 19 terá condições de entendê-lo melhor, de perceber que é uma espécie de programa que nem sequer foi interiorizado, mas faz parte do caráter pessoal e determina o lugar em que o indivíduo acabará, em que acabaremos todos.

É como se o narrador, pelo simples fato de tocar uma pedra de um muro, descobrisse que toda a história lhe cai em cima.
Sim.

E de uma maneira dolorosa e dominante.
Até certo ponto, o futuro não interessa a mim nem à figura do narrador. Tenho a sensação de que o futuro é mais um elemento destruidor. Por outro lado, o passado, por mais terrível que seja, com todos os seus desastres, pode parecer uma espécie de refúgio, porque a dor experimentada no passado já terminou. Já não é uma dor dilacerante, é uma dor amortecida. Por isso a presença do passado tem um caráter tão ambivalente. De um lado o oprime, como um lastro; de outro o libera das limitações do presente.

E não fica reduzido apenas a uma via de escape?
Oh, não, não. Absolutamente. Tento mantê-lo o mais distante possível de qualquer perspectiva nostálgica, de qualquer interesse de antiquário. Na minha opinião, é uma tentativa de oferecer uma espécie de historiografia crítica.
Sinto a necessidade de afirmar a idéia de que nossa vida não somente é determinada pelos grandes acontecimentos do passado, mas que todos os pequenos fragmentos de história contribuem para um processo de evolução de dimensões cada vez mais reduzidas, do qual todos participamos, afinal. Portanto não tem absolutamente nada a ver com o fato de escapar, tampouco com nostalgia.

E o que nos explica tudo isso? Porque, quando folheamos seus livros, vemos fotografias, recortes, vemos um monte de coisas associadas a um cotidiano normal e corriqueiro. E, apesar disso, por baixo há um texto muito sutil, que tenta dar sentido a todos esses detalhes.
Sim, mas não tenho muita certeza de ser capaz de dotar de sentido tudo o que encontro. Em todo caso, há a tentativa de dar uma prova. Apesar disso, será antes de tudo um sentido estético. E me dou conta de que construir um formato decente, em prosa, com tudo o que encontro de forma casual, é uma preocupação que, de certo modo, não tem outra ambição senão recuperar por um breve instante algo da torrente da história que cai a toda velocidade.
Por isso, entre outros motivos, incluo fotografias no texto. Porque a fotografia representa uma espécie de paradigma de tudo isso. A fotografia está destinada a se perder no fundo de uma caixa ou em um vão. É um objeto nômade, com poucas probabilidades de sobreviver, e me parece que todos experimentamos essa sensação ao encontrar acidentalmente um documento fotográfico de um parente morto ou de um desconhecido. Sentimos então uma espécie de atração pelo fato de tê-lo encontrado depois de algumas décadas. Imediatamente ele volta, cruza o umbral e diz: "Ei, um momento, eu também existi, por favor, ocupe-se de mim por um instante". São essas coisas, sem valor em si mesmas, que, não sei como, me fazem trabalhar.

Tudo parece acontecer por acaso. O senhor encontra recortes de jornal que se encaixam perfeitamente na história. É o escritor que organiza de forma inteligente todo esse material ou apenas uma pessoa afortunada que sempre encontra o jornal adequado?
Bem, de vez em quando acontecem coisas muito estranhas.

Mas o senhor parece ter um dom para colecionar recortes da imprensa.
Sim, sim, parece que sim. Eles surgem em minhas mãos.

Um dom inato...
Deve ser isso. E, mais que me desconcertar, isso me reconforta, porque creio que Adorno, a quem ainda aprecio muito, disse em certa ocasião: "Se você vai pelo bom caminho, as datas aparecem sozinhas e se oferecem, não é preciso sair a procurá-las".

Não é preciso ir tão longe. Alguém lhe explica a história de uma pessoa que teve um acidente na montanha no início do século passado e, por pura coincidência, o senhor está nos arredores desse lugar depois de 70, 80 anos, justamente no dia em que encontram o corpo. Além disso, um segundo antes de jogar fora o jornal, percebe que na realidade fala da mesma história.
Isso também me serve para desorientar o leitor.

E o consegue.
É o mesmo procedimento utilizado nas novelas policiais, onde no final tudo se encaixa em seu lugar. E, é claro, você pode utilizar bem as coincidências de modo retrospectivo. Pode utilizar os recortes de jornal que incorpora ao texto como verificação parcial do que está dizendo.

À primeira vista é estranho ver as ilustrações do livro. Não se espera que "romances livros de viagens" incluam tantas ilustrações e que estas tenham uma parte funcional no texto. Na realidade não ilustram, mas fazem o texto avançar. A frase acaba justamente antes da fotografia, e a fotografia se transforma em parte da história.
Sim, mas de todo modo você ainda tem a possibilidade de utilizar alguns dos truques em que se baseiam as novelas policiais. Porque não pode organizar tudo de maneira retrospectiva. Eu já tinha os recortes de jornal e foi necessário apenas inventar um personagem que se encaixasse neles e associá-lo ao protagonista do texto. Nesse caso, além disso, acontece que era verdade.

Essa é a chave da questão. Pareceu-me que os casos eram verdadeiros, na maioria.
Na maioria, mas inventei alguns. Por isso o leitor deve se perguntar o tempo todo: isso aconteceu de verdade ou não? Esse é um dos problemas mais importantes da ficção.


Os grandes incêndios da Segunda Guerra Mundial foram apenas os precursores dos fogos que ardem na atualidade


Os autores do século 19 sempre diziam que tinham encontrado um manuscrito num esconderijo e que, portanto, era tudo verdade. Não contavam uma história que haviam inventado, mas davam prova da vida real e, evidentemente, enquanto narradores, ainda temos que enfrentar de alguma maneira o mesmo problema. Parece-me que essa tentativa de legitimação do relato é um problema crucial.

A diferença é que o senhor não encontra nenhum manuscrito em um esconderijo, o que faz é oferecer o material original que confirma o que o autor diz.
Por isso as fotografias são tão úteis.

O senhor coleciona fotografias.
Sim, há vários anos coloco numa caixa tudo o que encontro, embora também tenha uma pequena câmera, das baratas. Às vezes você encontra as coisas mais incríveis, e, se não as documentar pessoalmente, ninguém acreditaria.

Um comentário final sobre o livro "Os Anéis de Saturno". Esse vagar pelos campos, que é ao mesmo tempo vagar pelos campos e pela história, é como se fosse um movimento concêntrico, como o dos anéis de Saturno. Mas às vezes também parece um movimento em espiral, em torno de uma espécie de centro.
Sim, é verdade. Tem algo de espiral, de redemoinho, e me parece que, na maioria de meus textos, de um modo um pouco oblíquo, é evidente que o centro escuro de tudo é o passado alemão, entre os anos de 1925 e 1950, do qual eu mesmo sou fruto. Nasci em 1944, num lugar idílico aonde a guerra nunca chegou. Mas, quando penso nesse ano, não posso me abstrair do fato de que sei o que aconteceu no último ano de guerra: meu país natal bombardeado, as deportações para os lugares mais horríveis que se possa imaginar, a onipresença, porque não aconteceu somente em alguns lugares, mas em quase toda a Europa... Apesar de ter 21 anos quando deixei a Alemanha, levei comigo esse desastre e sua magnitude e ainda não consegui descarregá-lo em lugar nenhum.

E esse enlaçar o presente e o passado, uni-los novamente, dar continuidade à história, é uma maneira de honrar um tempo não vivido ou é uma visão crua de nossa história coletiva?
Na realidade é uma visão bastante crua de nossa história coletiva. Determinados aspectos a tornam suportável e tentamos não esquecê-los; mas em conjunto, visto de longe como um fenômeno evolutivo, dá a impressão de que o modo como evoluímos é uma grande aberração. Uma espécie de erro de cálculo da matriz da evolução. E, claro, somos cada vez mais conscientes disso. Os grandes incêndios da Segunda Guerra Mundial foram apenas os precursores dos fogos que ardem na atualidade.
Pode parecer uma perspectiva quase amoral se se pensar nas cidades e nos cadáveres em chamas da década de 1940 e então os associar, como faço freqüentemente, às imagens das florestas em chamas de Bornéu ou da Amazônia. Seria hipócrita olhar para trás, para os anos 1940-1945, e dizer que foi uma época terrível. Creio que ainda estamos plenamente nessa época.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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