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Depoimento

Mesmo na difícil reta final, Vieira de Mello manteve discurso confiante

ROBERTO DIAS SECRETÁRIO-ASSISTENTE DE REDAÇÃO

Os destinos de Sergio Vieira de Mello e do Iraque ainda não haviam se cruzado de maneira definitiva quando encontrei o brasileiro pela primeira vez, na sede da ONU em Nova York, em março de 2003.

Ele ocupava o cargo de alto comissário da ONU para direitos humanos; eu havia chegado horas antes à cidade para assumir o posto de correspondente da Folha. O diplomata vivia na Suíça e tinha ido aos EUA encontrar o presidente George W. Bush.

O brasileiro já era uma estrela da diplomacia, com atuação destacada nos corredores acarpetados e fora deles --comandara a transição do Timor Leste para a independência e trabalhara na reconstrução de Kosovo.

Na ONU, combinamos uma entrevista, a ser feita com ele já na Suíça. Ali do lado, minutos depois, o sueco Hans Blix, chefe dos inspetores no Iraque, tentaria novamente convencer o Conselho de Segurança a lhe dar mais tempo para procurar as armas de destruição em massa que os EUA diziam existir. Fracassou.

Com a contagem regressiva para a guerra já acelerada, a entrevista com Vieira de Mello aconteceu na semana seguinte. Iraque foi o tema central. O brasileiro criticou o argumento de seu anfitrião recente na Casa Branca. Usar as violações de Saddam Hussein aos direitos humanos para justificar a guerra, disse, era como "descobrir a roda".

Na semana seguinte, Bush ordenou a invasão, completando a desmoralização da ONU e de seu secretário-geral, o ganês Kofi Annan.

Saddam logo caiu, e a ONU foi novamente colocada no tabuleiro, para ajudar na reconstrução. Os americanos passaram a pressionar para que Vieira de Mello fosse o indicado das Nações Unidas para o trabalho in loco.

Annan nomeou-o, e a apresentação oficial foi feita em Nova York no final de maio, em tom triunfal: "Eu acho que ele não precisa ser apresentado". Vieira de Mello esbanjava confiança: "Não seremos patos mancos".

Na semana seguinte, embarcou para o Iraque. Os relatos feitos lá por agências de notícias e pela ONU contrastavam fortemente com o que havia sido dito em Nova York.

Transferir o poder dos americanos para uma autoridade local parecia tarefa muito difícil. Tampouco havia sido possível levar os inspetores de armas da ONU de volta ao país. Os planos de visitar todas as 18 províncias iraquianas estavam complicados, por falta de segurança.

Ao fim do primeiro dos quatro meses do mandato que havia sido dado a Vieira de Mello, a Folha destacou uma reportagem com o título "ONU não cumpre metas após um mês no Iraque".

Entre os entrevistados, alguém que o conhecia bem: o pesquisador Arthur Helton, do CFR (Council on Foreign Relations), centro de estudos dos EUA. Ele referendava o diagnóstico: "Na melhor hipótese, ele tem sido um conselheiro independente da autoridade [os EUA]". Uma grande diferença para quem, no Timor Leste, era chamado de "ditador benevolente".

Mesmo assim, ele continuaria demonstrando confiança nas entrevistas. Dois dias antes de morrer, disse que ia "integrar as iniciativas da ONU para que os trabalhos sejam mais eficazes".

O DIA DO ATENTADO

No fatídico 19 de agosto, a ONU entrou em parafuso. Funcionários tinham que conter os colegas, que, atrás de informação, queriam invadir a sala de entrevistas.

Annan estava de férias na Finlândia. Cancelou-as e voou de volta para Nova York. "Não consigo pensar em ninguém que faria mais falta."

Funcionários das Nações Unidas fizeram vigília do lado de fora da sede. Vieira de Mello se tornara colega deles por um motivo familiar: após a ditadura brasileira cassar seu pai, também diplomata, ele se recusou a trabalhar para o Itamaraty, e a ONU apareceu como caminho lógico.

Em meio ao caos daquele dia, ocorreu-me telefonar de novo para Helton, do CFR. Sua secretária atendeu chorando. Logo entendi: Helton viajara ao Iraque e, na hora da bomba, estava com Vieira de Mello. Sua morte seria confirmada no dia seguinte.

O brasileiro foi enterrado na Suíça, ao som do Coldplay, que passou a ouvir após ganhar um CD dos filhos. O refrão escolhido diz: "Nobody said it was easy" (ninguém disse que era fácil).


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