São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

Próximo Texto | Índice

ORIENTE MÉDIO

Dirigente diz à Folha que só um Estado palestino encerrará o levante, alvo de questionamento até em seu governo

Arafat ignora críticas e mantém Intifada

Murad Sezer - 31.dez.2002/Associated Press
Iasser Arafat, presidente da Autoridade Nacional Palestina, faz discurso em Ramallah (Cisjordânia)


PAULO DANIEL FARAH
ENVIADO ESPECIAL A RAMALLAH

O líder palestino Iasser Arafat afirma que, apesar das críticas que vem recebendo de algumas autoridades ligadas a seu governo, além de Israel e dos Estados Unidos, a Intifada (levante contra a ocupação israelense) não vai ser interrompida até a fundação de um Estado palestino.
"A Intifada vai continuar até a aceitação de nosso Estado palestino independente com Jerusalém como capital. Estamos defendendo os lugares sagrados cristãos e muçulmanos e vamos prosseguir nossa caminhada para alcançar nossos objetivos contra a ocupação", disse Arafat, 73, com os lábios tremendo bastante e agitando as mãos, em seu escritório em Ramallah, na Cisjordânia. O prédio onde ele fica atualmente é o único que restou na área que abrigava a sede da liderança palestina.
Sobre a eventual retomada do processo de paz com os israelenses, Arafat afirmou: "Apenas lamento que os americanos estejam totalmente ocupados preparando uma guerra contra o Iraque e não tenham tempo para mais nada".
Ao menos 1.760 palestinos e 675 israelenses foram mortos desde o início da atual Intifada, em 28 de setembro de 2000.
O presidente da Autoridade Nacional Palestina disse estar pronto para negociar com quem vencer as eleições israelenses, no próximo dia 28. A respeito das eleições palestinas, programadas inicialmente para 15 de janeiro, afirmou: "O Conselho Eleitoral disse que ainda não era a hora e que não havia condições de promover eleições nas cidades reocupadas".
A seguir, trechos da entrevista que Arafat concedeu à Folha.

Folha - Qual sua avaliação da Intifada? Alguns analistas afirmam que ela fracassou e que só piorou a situação dos palestinos...
Iasser Arafat
- Ainda estamos lutando por um Estado palestino independente e pela paz dos bravos, mas realmente há muitas dificuldades. Quando eu ia a Belém, a cidade de Jesus Cristo, costumava pedir por um Estado soberano com Jerusalém como capital. Era muito difícil até para mim entrar na igreja da Natividade, tamanha a multidão. Agora, pela segunda vez, impediram-me de participar da missa de Natal. E havia pouca gente devido ao cerco e ao toque de recolher. Além disso, o que estamos enfrentando em Al Khalil [nome árabe de Hebron, na Cisjordânia", as novas ocupações, a judaização de Jerusalém Oriental... Durante o Ramadã [mês sagrado islâmico", impediram muitos muçulmanos de rezar nos lugares sagrados. Tivemos ainda Jeningrado [Jenin, cidade na Cisjordânia" e Rafahgrado [Rafah, em Gaza", mas a ONU prefere fazer um relatório sobre o que acontece na Palestina sem nem visitar a cidade sobre a qual produz suas avaliações. Por fim, esse muro que está sendo construído para forçar a fronteira que Israel deseja, que é pior que o Muro de Berlim, faz-nos perder aldeias inteiras com o único intuito de permitir a ampliação do território israelense e de seus assentamentos.

Folha - Nesse sentido, a Intifada não tem sido contraproducente?
Arafat -
O Banco Mundial estima nossas perdas devido aos danos causados contra a infra-estrutura palestina, com a destruição de casas, hotéis, hospitais e prédios públicos, em mais de US$ 20 bilhões. E eles ainda continuam a destruir nossas escolas. Com que finalidade? Veja essas flores [Arafat aponta para um vaso em cima da mesa, em seu escritório", elas foram enviadas de Gaza porque os palestinos não podem exportá-las. Israel proibiu a exportação de nossos produtos. As oliveiras, que na Palestina chamamos de árvores romanas, porque são muito antigas, vêm sendo destruídas sistematicamente. De fato, 55% das oliveiras foram arrancadas. Quantos milhares de famílias dependem dessas oliveiras?

Folha - Alguns palestinos, incluindo autoridades ligadas a seu governo, vêm sugerindo que talvez seja hora de adotar outra estratégia para permitir a retomada do processo de paz...
Arafat -
Precisamos realmente é de uma intervenção internacional, de uma presença internacional permanente. Por que há forças da ONU no sul do Líbano e no Sinai, mas não aqui? Por que não?
No caso de uma guerra contra o Iraque, vão aproveitar a oportunidade para ampliar sua agressão contra nós. Quando o Taleban destruiu as estátuas de Buda no Afeganistão, o que aconteceu? Houve protestos do mundo inteiro. Eu tenho o direito de perguntar como isso pôde ser feito contra nossa santa. Esta estátua levou 11 tiros [ele mostra uma foto de uma estátua de Maria com marcas de bala", em Belém, na cidade onde Cristo nasceu, e ninguém disse nada. Isso não é apenas contra os cristãos, mas contra esta mulher santa mencionada em nosso Alcorão, que tem um capítulo inteiro em sua homenagem. Ninguém disse nada sobre isso. Eles falam sobre as armas proibidas usadas pelo Iraque, e eu digo que eles estão usando armas proibidas contra nós [Israel nega a acusação".
A Intifada surgiu como um movimento popular contra a ocupação israelense e a ampliação constante dos assentamentos judaicos, um movimento inflamado pela provocação de Sharon [Ariel Sharon, atual premiê" ao entrar em nosso templo sagrado em Jerusalém com soldados.
A Intifada vai continuar até a aceitação de nosso Estado palestino independente com Jerusalém como capital. Estamos defendendo os lugares sagrados cristãos e muçulmanos e vamos prosseguir nossa caminhada para alcançar nossos objetivos contra a ocupação. Isso de forma pacífica. Quando eu saí do Líbano, perguntaram-me "Para onde você vai, Abu Ammar [como Arafat é conhecido entre os palestinos"?" Respondi: "Para a Palestina". Agora, digo: "Para Jerusalém". Se Deus quiser, nossas crianças vão voltar a passear em Jerusalém.

Folha - Como estão as negociações entre o Fatah, seu grupo político, e movimentos extremistas como o Hamas para pôr fim aos atentados contra israelenses? A reunião no Cairo, iniciada no final de dezembro, entre esses grupos, produziu resultados?
Arafat
- A reunião no Cairo foi extremamente importante, mas é fundamental dizer que eu já pedi o fim das ações suicidas diversas vezes, em árabe e inglês. E, quando eles interromperam as ações, novas matanças de palestinos promovidas por Israel e mais provocações reiniciaram a violência.

Folha - As eleições israelenses estão se aproximando, vão acontecer em 28 de janeiro. O sr. acredita que seria mais fácil negociar com algum dos candidatos?
Arafat
- Estou disposto a negociar com Sharon [que busca a reeleição" ou com quem quer que seja. Negociei com ele e com Netanyahu [Binyamin Netanyahu, ex-premiê" em Wye [Estados Unidos". E também com Rabin [Yitzhak Rabin", com Shimon Peres e com Barak [Ehud Barak, premiê que antecedeu Ariel Sharon". Nós não estamos interferindo na campanha eleitoral dos israelenses. Ao contrário deles, negociamos com quem for eleito. Aceitamos negociar com qualquer um que seja eleito pelos israelenses, não determinamos com quem devemos negociar.

Folha - E, se Amram Mitzna, líder trabalhista, for eleito, o sr. espera mudanças na política israelense?
Arafat
- Barak destruiu o Partido Trabalhista. Não havia nenhuma razão para ele aceitar a antecipação de eleições. Ele deveria ser até hoje o primeiro-ministro, mas houve uma grande conspiração entre ele e Sharon, que aumenta sua popularidade à custa da morte de palestinos.

Folha - Após o governo israelense de Binyamin Netanyahu (1996-99), muitas pessoas na região receberam Ehud Barak com a esperança de que o processo de paz fosse reativado. E Barak afirma ter apresentado uma proposta generosa para os palestinos em Camp David, nos Estados Unidos, em julho de 2000. Por que não foi firmado um novo acordo para pôr fim ao conflito israelo-palestino?
Arafat
- Barak queria resolver tudo em cem dias para entrar para a história como um grande líder. Por que nunca disse ao mundo realmente o que nos ofereceu? Que Estado no mundo não tem controle sobre a água e sobre as estradas? Nem soberania aérea? Os assentamentos, e não há nada mais destrutivo para o processo de paz, multiplicaram-se tremendamente em seu governo. Por que nenhum governo israelense aceitou acabar com eles, esse mal que impede qualquer acordo? Além disso, Barak rejeitou o retorno dos refugiados e queria controlar locais sagrados para cristãos e muçulmanos. Na realidade, o cronograma de retiradas militares estabelecido nos acordos de Oslo [1993" não foi cumprido.

Folha - Em que medida as relações pessoais com líderes israelenses, sobretudo entre o sr. e Sharon, influenciam as negociações de paz? Elas prejudicam as negociações de alguma forma?
Arafat
- Estamos totalmente comprometidos com o que firmamos com nosso parceiro Rabin, com a paz dos bravos. Rabin pagou com sua vida por causa desses grupos extremistas de Israel. Até agora, estamos totalmente comprometidos com a paz dos bravos. Na cúpula em Beirute, os países árabes adotaram a iniciativa de paz saudita, do rei Abdullah. Apesar disso, Sharon simplesmente reocupou a Cisjordânia e dividiu Gaza em quatro partes, quatro "bantustões". O que estamos enfrentando é humilhação e mais humilhação. Nas barreiras militares, proíbem muitas de nossas mulheres de chegar até o hospital para dar à luz. Muitas delas tiveram de dar à luz diante dos soldados e dos outros passageiros que aguardam nas barreiras. Algumas morrem. Mesmo na África do Sul... Os visitantes da África do Sul dizem que o que acontece na Palestina é totalmente diferente do que havia na África do Sul contra os negros. A situação, sem dúvida, é pior. Entre outros, foi um ministro sul-africano quem disse isso. Visitei boa parte da África e fiquei bem a par de seus problemas. O que há aqui é pior. No caso de Sharon, ele tem medo do tribunal na Bélgica que o acusa de violações dos direitos humanos e crimes de guerra. Ele também não se esquece de sua derrota, em 1982, em Beirute [capital do Líbano", quando queria me matar.

Folha - E as eleições palestinas, por que foram adiadas?
Arafat
- Elas iam acontecer ainda em janeiro, mas o Conselho Eleitoral Palestino disse que ainda não era a hora e que não havia condições de promover eleições nas cidades reocupadas. Queríamos realizar as eleições em 15 de janeiro, mas isso não será possível, segundo o Conselho Eleitoral. É nosso direito realizar eleições presidenciais, legislativas, embora saibamos que há muita gente que não quer isso para nos criticar.

Folha - Quem quer evitar as eleições palestinas?
Arafat
- Há grupos que querem impedir as eleições, mas elas são nosso direito como muçulmanos, cristãos e árabes. Isso é o que importa.

Folha - O plano de paz que vem sendo discutido com a participação da União Européia, dos EUA, da Rússia e da ONU pode ajudar a reduzir a violência que atinge palestinos e israelenses?
Arafat -
Sem dúvida. O plano, na realidade, já está pronto. Apenas lamento que os americanos estejam totalmente ocupados preparando uma guerra contra o Iraque e não tenham tempo para mais nada. Durante a guerra contra o Iraque, vai haver mais crimes e mais violência contra nós.

Folha - Israel afirma que um acordo com o sr. na liderança é impossível. O sr. teme a deportação de líderes políticos palestinos, incluindo o sr. próprio?
Arafat -
Sim, os israelenses já declararam isso oficialmente. O próprio Sharon disse isso em público. Temo também a deportação maciça dos palestinos de nosso próprio território, o que Israel costuma chamar de "transferência" de população. Esperamos uma presença de voluntários internacionais para evitar essa operação e esperamos também que eles não sejam expulsos como aconteceu com ao menos 12 estrangeiros que queriam participar do Fórum Temático Palestina [iniciativa do Fórum Social Mundial". Não me esqueço de minha visita ao Brasil, da acolhida que recebi nesse país, e eu espero brasileiros aqui também defendendo os direitos humanos. Nesta Intifada, já temos dezenas de milhares de feridos. Cerca de 30% deles se tornaram deficientes físicos, e quase a metade deles é jovem, grande parte com menos de 16 anos.
Não nos esqueçamos de que a Palestina é um país pequeno territorialmente, mas, ao mesmo tempo, somos um país grandioso moralmente, que não dispensa apoios. O apoio da Europa é fundamental nesse sentido. E dos EUA ainda esperamos uma mediação equilibrada. Ao menos, esperamos que eles pressionem com firmeza alguma ação da ONU e, o mais rápido possível, uma intervenção internacional.



Próximo Texto: Paz
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.