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ENTRE A UTOPIA E A REALIDADE
Principais movimentos latino-americanos esperam que Brasil os lidere se Lula vencer
Esquerda da AL busca rumo de olho no Brasil
RODRIGO UCHÔA
ROGERIO WASSERMANN
DA REDAÇÃO
Os principais líderes políticos de
esquerda na América Latina são
quase uníssonos ao declarar que
uma eventual vitória de Lula no
Brasil daria um novo fôlego a essa
corrente política no continente.
Muitos deles apostam até numa
nova "solidariedade latino-americana" de governos de esquerda,
tendo o Brasil como locomotiva.
Mas o que é a esquerda na América Latina? Esse frisson se justifica? Qual é o real papel do Brasil?
Questionados pela Folha, líderes empresariais e sindicais, analistas, políticos e jornalistas -do
Brasil e de fora- acabam por formar um quadro amplo da "nova
esquerda latino-americana".
O primeiro ponto é a indicação
do que poderíamos chamar de
crise de identidade.
"Ideologicamente, o eleitorado
da América Latina está hoje mais
ao centro e à direita que há cinco
anos. O que mudou foram os discursos dos líderes de esquerda,
que acompanharam esse movimento", afirma a economista chilena Marta Lagos, coordenadora
da Corporación Latinobarómetro, responsável por uma pesquisa anual na região.
Para ela, Lula é um exemplo claro dessa tendência: "Ele [Lula]
tem um discurso menos esquerdista e não é reconhecido pela
maioria do eleitorado como sendo de esquerda".
O americano Albert Fishlow, diretor do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade Columbia,
de Nova York, reforça: "Eu diria
que a posição de Ricardo Lagos
[presidente do Chile, do Partido
Socialista, mas cujo governo
mantém políticas liberais e é bem
avaliado pelo mercado], quando
foi eleito, em 2000, estava muito
mais à esquerda do que as posições atuais de Lula".
Nessa linha, o professor de filosofia da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul Denis Rosenfield aponta uma certa "vergonha" da esquerda se assumir como tal. Para ele, "muitos dos grupos mais radicais hoje em dia "disfarçam" suas tendências revolucionárias, as "esquecem'".
Líderes históricos da esquerda
discordam dos analistas.
"Não creio que os partidos de
direita e os de esquerda estejam
buscando as mesmas políticas
nem tendo os mesmos objetivos.
Para dar um exemplo, vamos ao
caso específico do México, onde a
direita, hoje no poder, pretende
privilegiar uns poucos e segue
concentrando a riqueza, sem se
preocupar com o aumento da miséria", afirma o mexicano Cuahutémoc Cárdenas, três vezes candidato a presidente de seu país e o
principal líder da esquerda de lá.
As linhas gerais do discurso de
Cárdenas contra a miséria podem
ser identificadas nas plataformas
políticas que levaram, por exemplo, Fernando de La Rúa e Alejandro Toledo ao poder na Argentina
e no Peru, respectivamente.
Os dois, porém, implementaram políticas que literalmente
destroçaram seu apoio popular,
levando à queda do argentino no
ano passado e a um índice de rejeição do presidente peruano que
bate os 75%.
Sem margem de manobra
Outro ponto foi comum entre
os entrevistados: todos falam da
falta de margem de manobra dos
governos, sejam eles de direita ou
de esquerda. Cárdenas reconhece
isso e diz que a situação se deve à
economia globalizada, mas reforça sua crença nas diferenças entre
esquerda e direita.
Questionado pela Folha sobre o
futuro dos governos latino-americanos, o vice-ministro de Finanças da Alemanha, Caio Koch-Weser, disse que "há realidades financeiras essenciais que todo governo tem de enfrentar".
Koch-Weser, alemão nascido
no Brasil, acrescenta que essa realidade se impõe à América Latina
em geral, mas afirma ver com otimismo que as linhas de crédito
dos organismos internacionais
continuam fluindo para a região.
"Os US$ 30 bilhões do FMI ao
Brasil são o exemplo mais forte."
O analista Luis Vicente León, diretor do instituto de pesquisas venezuelano Datanálisis, não é tão
otimista. Ele afirma que um avanço da esquerda na América Latina
terá de conviver com a escassez de
investimentos externos.
"Com a Argentina passando
por uma grave crise e a Venezuela
passando por uma turbulência
política, não há dúvida de que
uma vitória de Lula tornaria os investimentos externos ainda mais
raros. O capital não gosta de correr riscos", acrescenta León.
Papel do Brasil
Mesmo com o giro político para
o centro levantado por Marta Lagos, a possibilidade de uma Presidência do PT exerce um poder
quase magnético sobre os movimentos à esquerda no continente.
"O triunfo de Lula terá um efeito importante nas forças que buscam a mudança no continente,
somando-se ao processo bolivariano de Hugo Chávez, ao futuro
triunfo da Frente Ampla no Uruguai, ao crescimento das forças
sociais na Bolívia e na Argentina e
às propostas das forças que
apóiam Lucio Gutiérrez no Equador", afirma Miguel Lluco, coordenador nacional do movimento
equatoriano indígena Pachakuti.
Evo Morales, líder dos cocaleiros da Bolívia e segundo colocado
na última eleição presidencial,
compara-se a Lula e diz torcer pelo petista. Seu partido, o MAS
(Movimento ao Socialismo), já
procurou o PT, em São Paulo, para se aconselhar.
Isso tudo não significa que já
haja uma verdadeira conexão da
esquerda latino-americana.
Membros da direção petista avaliam que ainda há um excesso de
"ingenuidade" e uma falta de coesão nesses movimentos, o que
adia contatos "mais frutíferos".
Esse tipo de discurso "ingênuo"
parece ter sido abandonado pelo
PT, como podem levar a crer as
recentes declarações de Lula se
desvinculando de extremistas, como a guerrilha de orientação
marxista Farc (Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia).
"Não convém a Lula manter relações com a insurgência colombiana, que com suas ações de terror já perderam toda a credibilidade política interna e externa",
avalia o colombiano Otty Patiño,
ex-líder da guerrilha M-19 que se
integrou à vida pública após um
processo de paz no início dos
anos 90. "Não é concebível que alguém no governo mantenha relações com esses grupos", diz.
Há que se lembrar que, no ano
passado, membros do PT chegaram a abrir um comitê de apoio às
Farc no interior de São Paulo.
"O PT é tomado por contradições não-resolvidas. Porém, se
conseguir lidar com essas contradições e se o discurso atual de Lula for verdadeiro, um eventual governo do partido pode dar uma
enorme contribuição ao Brasil e à
América Latina", diz Rosenfield.
O professor concorda, por outro lado, que os antigos discursos
de esquerda característicos dos
anos 60 ainda têm um lugar importante no imaginário latino-americano e que isso é difícil de
superar. Um exemplo: o líder sandinista nicaraguense, Daniel Ortega, enviou uma carta desejando
sorte a Lula. A retórica fala por si:
"Invocamos o espírito dos heróis
e mártires da América Latina e do
Caribe e a esperança e os sonhos
dos povos do mundo para que se
faça realidade essa vitória".
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