São Paulo, domingo, 28 de outubro de 2001

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ARTIGO

O fim da globalização?

Para o sociólogo britânico Anthony Giddens, não só não é o fim como a globalização é a saída possível para este período difícil do mundo

ANTHONY GIDDENS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma transição de importância maior está acontecendo na sociedade mundial. Suas evidências estão visíveis por toda parte, à nossa volta. A recessão ameaça chegar ou já chegou aos Estados Unidos, as economias européias estão em queda, e o Japão mergulhou num estado de estagnação econômica.
Protestos políticos em grande escala voltaram a ser comuns, tanto à esquerda quanto à extrema direita. Os ultrajes terroristas em Nova York e Washington acrescentaram um fator adicional, preocupante e altamente perigoso a essa reviravolta de transformações.
À luz desses acontecimentos, alguns comentaristas já estão falando do "fim da globalização". Para eles, a integração global já foi longe demais. Se quisermos recolocar o mundo no caminho certo, dizem, teremos, em essência, que fazer o que querem os manifestantes contrários à globalização: fazer o relógio voltar para trás em relação às últimas décadas.
A globalização sempre foi um projeto do Ocidente e das grandes empresas, afirmam. Seus beneficiários foram os ricos, muito mais do que os pobres, resultando nas consequências terríveis que agora observamos.
Os ataques terroristas teriam sido um sinal visível de que os marginalizados fazem questão de bater de volta nos responsáveis pelo destino que sofrem.
Mas essas afirmações estão erradas e precisam ser contestadas. A globalização nunca foi resultado de políticas escolhidas conscientemente e não pode ser revertida por decisão nossa.
Ademais, apesar das perspectivas sombrias que se apresentam para boa parte do mundo no momento atual, a globalização oferece benefícios, incluindo vantagens para os países mais pobres, que não podem ser alcançados de nenhuma outra maneira.
A definição mais simples de globalização é "interdependência crescente". Acontecimentos que têm lugar longe de nós afetam nossas vidas mais do que nunca. As origens de nossa crescente interdependência são bem profundas. Elas incluem, é claro, a crescente integração da economia mundial, preocupação mais comum dos manifestantes, mas muito mais do que isso também.
A globalização tem sido movida tanto pela revolução das comunicações, o fim da Guerra Fria e os padrões mutantes da soberania nacional quanto por influências puramente econômicas.
Considere-se, por exemplo, o impacto da internet. Criada originalmente pelo Departamento da Defesa dos Estados Unidos, ela já penetrou praticamente em todo o planeta. Não existe um caminho de volta a um mundo sem a internet (e não deveríamos procurar por tal caminho, tampouco). A interdependência global chegou para ficar.
Mais do que contradizer essa conclusão, os ataques ao World Trade Center e ao Pentágono a confirmam. Não foram uma agressão de um país a outro, o que seria uma guerra sob forma tradicional. As vítimas foram não apenas americanos, mas pessoas de muitos países de todo o mundo.
Os perpetradores dos atentados podem ter recebido assistência de alguns países, mas foram motivados principalmente pelo fervor religioso. Seus atos só se tornaram possíveis porque eles faziam parte de uma rede transnacional que atua em muitos países.
Nenhuma ação militar local dos Estados Unidos ou da Otan, por maior que fosse, constituiria uma resposta adequada a eles. Apenas a cooperação internacional no combate ao terrorismo tem qualquer chance de sucesso em longo prazo.
Em seus primeiros meses de existência, o governo Bush pareceu compartilhar os pontos de vista daqueles que se declararam contrários à globalização. O presidente Bush assumiu uma postura isolacionista, rejeitando tratados internacionais sobre o controle de armas nucleares, contra o aquecimento global e em outras áreas. Buscou reduzir o envolvimento dos EUA na luta entre israelenses e palestinos.
Mas os ataques obrigaram o governo americano a reconhecer a natureza interdependente do mundo contemporâneo. Em conjunto com outros países, os EUA estão exercendo pressão enorme sobre os protagonistas no Oriente Médio para que renovem a tentativa de resolver suas diferenças.
Tendo anteriormente se posicionado contra as políticas da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) que visavam controlar os paraísos fiscais, os EUA agora mudaram de atitude, passando a encorajar esse esforço. Recentemente Bush falou da necessidade de retomar as discussões sobre o aquecimento global, se bem que, ao mesmo tempo, tenha continuado a afirmar que os acordos de Kyoto são inviáveis.
Para que possamos emergir dos tempos sombrios em que ingressamos será necessária mais globalização, e não menos. A globalização diz respeito, entre outras coisas, ao progresso do direito internacional. Precisamos esperar que os Estados Unidos e a comunidade mundial mais ampla reconheçam que, para ser eficaz, a ação militar contra as fontes do terrorismo deve ter como objetivo fazer respeitar a lei, e não fazer impor sua vontade pela guerra.
No passado, os EUA opuseram resistência aos esforços feitos para criar formas internacionais de direito criminal. Nessa área, assim como em outras, o país precisa mudar seus pontos de vista. Os terroristas não devem ser tratados como adversários militares, mas como criminosos.
O movimento antiglobalização afirma que o abismo entre ricos e pobres no mundo está aumentando e que a responsabilidade disso cabe à globalização. A primeira idéia é questionável e a segunda é falsa. Não existem tendências simples em matéria de desigualdade mundial. Alguns dos maiores países do leste asiático, incluindo a China, têm hoje um PIB muito maior, comparado aos dos países ocidentais, do que tinham 30 anos atrás.
A razão disso é simples: ao longo desse período eles vêm apresentando índices médios de crescimento consideravelmente superiores aos ocidentais. Esse êxito foi obtido com a participação na economia mundial, e não com sua rejeição.
As sociedades que procuraram se isolar das influências globalizadoras, como a Coréia do Norte, Mianmar ou Irã, sem falar no próprio Afeganistão, estão entre as mais miseráveis e mais autoritárias do mundo.
Todos nós temos razões para nos preocupar com a triste situação da África, onde alguns países hoje estão mais pobres, em termos absolutos, do que eram 30 anos atrás. Mas essa situação não se deve à globalização. Os problemas da África estão mais relacionados ao fato de que a globalização passou ao largo de boa parte do continente.
Durante a Guerra Fria, a África foi uma das regiões em que as duas superpotências se enfrentaram, por meio de terceiros. Mas, com seu final, as potências industriais perderam boa parte de seu interesse pelo continente.
Se quisermos que a África algum dia viva seu milagre econômico próprio, será preciso que os países africanos, longe de serem excluídos dos processos de globalização, sejam mais e mais incluídos neles.
Se os acontecimentos de Nova York e Washington servirem para convencer os governos, e especialmente o americano, de que eles precisam cooperar de maneira mais ativa para administrar a globalização, ainda é possível que o mundo saia deste período difícil mais perto do que antes de empreender o rumo certo.


Anthony Giddens é sociólogo, um dos idealizadores da política da Terceira Via do governo Tony Blair e autor de "O Estado-Nação e a Violência" (Edusp)

Tradução de Clara Allain




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