São Paulo, domingo, 29 de fevereiro de 2004

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AMÉRICA LATINA

Cientista político americano sustenta que a democracia direta venezuelana não permite superar conflitos

Chávez amplia luta de classes, diz analista

FABIANO MAISONNAVE
DA REDAÇÃO

Em 1961, durante uma visita a Caracas, o então presidente americano, John Kennedy, disse que a democracia venezuelana se mostrava uma verdadeira alternativa ao comunismo e ao autoritarismo para o hemisfério Ocidental. Essa imagem de exceção democrática ganhou ainda mais força ao longo do anos 60 e 70, quando uma onda de regimes militares autoritários se instalou na maioria dos países sul-americanos.
Hoje, dificilmente a Venezuela suscitaria admiração ou inveja dos países da região. Rachado entre as forças leais ao presidente populista Hugo Chávez e uma oposição diversa, mas aglutinada em torno do inimigo comum, o país vive hoje sob um dos regimes mais instáveis e polarizados da América do Sul.
Parte dessa trajetória é analisada no livro "The Unraveling of Representative Democracy in Venezuela" (a dissolução da democracia representativa na Venezuela), que será publicado em maio nos EUA. Organizado pelos cientistas políticos americanos David Myers, da Universidade Estadual da Pensilvânia, e Jennifer McCoy, da Universidade Estadual da Geórgia, a obra aborda aspectos políticos, econômicos e culturais que levaram ao declínio da chamada "democracia Puntofijo", regime bipartidário iniciado em 1958, com a deposição do general Marcos Pérez Jiménez, e encerrado com a eleição de Chávez, que inaugura a Quinta República.
Em meio à polarização, o livro apresenta uma rara análise distanciada e independente do furacão venezuelano. McCoy, que escreveu uma conclusão para a coletânea, atualmente coordena a equipe de observadores internacionais do Centro Carter na Venezuela. Presidida pelo ex-presidente americano Jimmy Carter (1977-1981), a ONG tem o apoio de ambos os lados.
Leia a seguir a entrevista concedida à Folha por Myers, 63.

 

Folha - Quais as diferenças entre a democracia bipartidária venezuelana pós-1958 ("Puntofijo") e a Quinta República chavista?
David Myers -
A "democracia Puntofijo" dependia muito de instituições representativas e demonstrava bastante respeito pelas regras que codificavam as relações entre essas instituições. Por outro lado, houve vários momentos em que os líderes dos partidos AD [Ação Democrática, social-democrata] e Copei [democrata-cristão] negociavam acordos que deturpavam as relações constitucionais entre as instituições políticas nacionais [Executivo, Legislativo e Judiciário] e entre instituições políticas nacionais e locais.
A "democracia Puntofijo" também procurou amortecer conflitos de classe. Os dois maiores partidos políticos eram instituições multiclassistas. Os partidos políticos baseados na divisão entre os pobres e os outros foram marginalizados durante os anos 60 e não tiveram nenhuma importância política até os anos 90.
A Quinta República se apresenta como uma "democracia direta". As pessoas são diretamente ligadas ao presidente eleito. A democracia representativa é mostrada pelos líderes da Quinta República como um regime político dominado pelas elites e marginaliza a população. Ao presidente é dada uma grande licença para interpretar as regras políticas do jogo (conforme definido na Constituição) na medida em que a Quinta República se aproxima de um regime político baseado nos caprichos personalistas de seu líder carismático. O governante acentua, ao invés de amortecer, o conflito de classes.

Folha - Quais os principais obstáculos à democracia na Venezuela?
Myers -
O respeito aos direitos individuais nunca foi uma tradição forte na Venezuela. Além disso, o governo não tem sido especialmente atento às exigências políticas de seus cidadãos.
Os governos da "era Puntofijo" tiveram enormes poderes para se defender contra insurgentes de esquerda, nos anos 60; por conseguinte, os líderes políticos usaram esses poderes para exercer controle e governar de forma a atender aos próprios interesses, dando pouca atenção às demandas vindas de cidadãos -da classe média ou pobres.
Entre 1988 e 1994, reformistas da classe média fizeram progressos significativos para aumentar a sensibilidade do governo e das elites políticas. Havia muitas reformas que deixaram o governo mais próximo das pessoas (eleições para governadores e prefeitos) e dificultaram as elites políticas centrais de agir em benefício próprio. Por um breve momento, parecia que a Venezuela institucionalizaria uma democracia mais profunda e atenta.
Essa tendência foi interrompida pela longo declínio econômico, intimamente ligado à redução de arrecadação do governo. Os ganhos com a venda de petróleo declinaram. Todo o sistema Puntofijo ficou desacreditado porque muitos dos que haviam ascendido para a classe média voltaram para as camadas pobres. A preocupação pela sobrevivência diária rapidamente ultrapassou as preocupações por um sistema político mais representativo e até mesmo pelo respeito aos direitos individuais.
O apoio a Chávez surgiu dos "despossuídos", e Chávez rapidamente concluiu que, para ganhar e manter o poder político, ele teria de fazer algo diferente de seus antecessores.

Folha - O sr. argumenta que a política econômica chavista não difere das do passado, sobretudo a dependência do petróleo. Por que ele não mudou as linhas gerais apesar da retórica esquerdista?
Myers -
A capacidade do governo Chávez de alocar recursos continua bastante dependente da exportação de petróleo. É a mesma situação de seus antecessores da "era Puntofijo", do regime Pérez Jiménez e até mesmo antes. Ele teve sorte pelo fato de o preço do petróleo ter-se mantido alto durante a maior parte de seu governo, de forma que ele tinha mais recursos que seus antecessores.
Chávez está distribuindo subsídios aos pobres e, enquanto suas reservas externas se mantiverem, ele poderá usar recursos do Estado para comprar aquiescência -para não dizer lealdade. No momento, a Venezuela tem quase US$ 24 bilhões de reservas estrangeiras à sua disposição.

Folha - Até que ponto Chávez faz parte da ascensão da esquerda na América Latina?
Myers -
Chávez é um populista militar. Ele é muito parecido com o modelo de Perón -e, talvez, com o de Vargas. Mas a época é diferente. Chávez procura Fidel Castro e militantes islâmicos para afastar a influência dos EUA e das democracias européias.

Folha - As relações entre Brasil e Venezuela cresceram bastante com Chávez, mesmo no governo Fernando Henrique Cardoso. Ao mesmo tempo, Chávez se distanciou de Washington. A diplomacia é uma das grandes mudanças de Chávez?
Myers -
Na época da posse de Lula, Chávez tinha muita esperança de que o novo presidente do Brasil estabelecesse um regime radical de esquerda interessado em desafiar o capitalismo global. Ele queria se unir a Lula num esforço para minar a influência global dos EUA e das multinacionais.
Lula, porém, está fazendo um jogo político mais sofisticado. Ele trabalha com o sistema capitalista internacional e com os EUA -quando entende que seja do interesse do Brasil. Em outras palavras, é muito mais pragmático. Chávez, que tem profundo desprezo pela influência americana, não está feliz com o estilo Lula.

Folha - No livro, argumenta-se que Chávez expandiu a influência das Forças Armadas na política. Trata-se de um novo risco para a democracia venezuelana?
Myers -
Os militares estão mais politizados do que qualquer período desde o governo do general Marcos Pérez Jiménez (1953-58). Neste momento, a maioria dos militares é leal a Chávez -não tanto à Quinta República como um regime político. No futuro, eles poderiam transferir sua lealdade a outro líder carismático.
Até meados dos anos 90, a maioria das Forças Armadas era leal à Constituição de 1961. Chávez restaurou às Forças Armadas o papel de árbitro político.

Folha - O sr. acredita numa normalização da política venezuelana a curto prazo?
Myers -
É altamente improvável.

Folha - O sr. acredita na possibilidade de uma intervenção americana na Venezuela?
Myers -
Os EUA estão ocupados com o Oriente Médio e a península coreana. Chávez continua vendendo petróleo para os EUA e, sob condições de sua escolha, ele tem até mesmo apontado uma vontade de aumentar a capacidade de produção de petróleo. Com essa política, faria pouco sentido para o governo Bush intervir abertamente na Venezuela.
Todavia, se o governo Chávez começar a organizar um movimento internacional para coordenar forças dissidentes na Colômbia, no Equador, no Peru e na Bolívia, numa aliança de esquerda (ou indigenista) radical, então os EUA poderiam mudar para uma intervenção ativa nos assuntos venezuelanos.
O objetivo seria encorajar oponentes a se unir para enfraquecer o poder do governo Chávez e minar sua capacidade de agir no exterior. Não há nenhuma evidência disso neste momento.



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