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AMÉRICA LATINA
Cientista político americano sustenta que a democracia direta venezuelana não permite superar conflitos
Chávez amplia luta de classes, diz analista
FABIANO MAISONNAVE
DA REDAÇÃO
Em 1961, durante uma visita a
Caracas, o então presidente americano, John Kennedy, disse que a
democracia venezuelana se mostrava uma verdadeira alternativa
ao comunismo e ao autoritarismo
para o hemisfério Ocidental. Essa
imagem de exceção democrática
ganhou ainda mais força ao longo
do anos 60 e 70, quando uma onda de regimes militares autoritários se instalou na maioria dos
países sul-americanos.
Hoje, dificilmente a Venezuela
suscitaria admiração ou inveja
dos países da região. Rachado entre as forças leais ao presidente
populista Hugo Chávez e uma
oposição diversa, mas aglutinada
em torno do inimigo comum, o
país vive hoje sob um dos regimes
mais instáveis e polarizados da
América do Sul.
Parte dessa trajetória é analisada no livro "The Unraveling of
Representative Democracy in Venezuela" (a dissolução da democracia representativa na Venezuela), que será publicado em maio
nos EUA. Organizado pelos cientistas políticos americanos David
Myers, da Universidade Estadual
da Pensilvânia, e Jennifer McCoy,
da Universidade Estadual da
Geórgia, a obra aborda aspectos
políticos, econômicos e culturais
que levaram ao declínio da chamada "democracia Puntofijo", regime bipartidário iniciado em
1958, com a deposição do general
Marcos Pérez Jiménez, e encerrado com a eleição de Chávez, que
inaugura a Quinta República.
Em meio à polarização, o livro
apresenta uma rara análise distanciada e independente do furacão venezuelano. McCoy, que escreveu uma conclusão para a coletânea, atualmente coordena a
equipe de observadores internacionais do Centro Carter na Venezuela. Presidida pelo ex-presidente americano Jimmy Carter (1977-1981), a ONG tem o apoio de ambos os lados.
Leia a seguir a entrevista concedida à Folha por Myers, 63.
Folha - Quais as diferenças entre
a democracia bipartidária venezuelana pós-1958 ("Puntofijo") e a
Quinta República chavista?
David Myers - A "democracia
Puntofijo" dependia muito de
instituições representativas e demonstrava bastante respeito pelas
regras que codificavam as relações entre essas instituições. Por
outro lado, houve vários momentos em que os líderes dos partidos
AD [Ação Democrática, social-democrata] e Copei [democrata-cristão] negociavam acordos que
deturpavam as relações constitucionais entre as instituições políticas nacionais [Executivo, Legislativo e Judiciário] e entre instituições políticas nacionais e locais.
A "democracia Puntofijo" também procurou amortecer conflitos de classe. Os dois maiores partidos políticos eram instituições
multiclassistas. Os partidos políticos baseados na divisão entre os
pobres e os outros foram marginalizados durante os anos 60 e
não tiveram nenhuma importância política até os anos 90.
A Quinta República se apresenta como uma "democracia direta". As pessoas são diretamente ligadas ao presidente eleito. A democracia representativa é mostrada pelos líderes da Quinta República como um regime político
dominado pelas elites e marginaliza a população. Ao presidente é
dada uma grande licença para interpretar as regras políticas do jogo (conforme definido na Constituição) na medida em que a Quinta República se aproxima de um
regime político baseado nos caprichos personalistas de seu líder
carismático. O governante acentua, ao invés de amortecer, o conflito de classes.
Folha - Quais os principais obstáculos à democracia na Venezuela?
Myers - O respeito aos direitos
individuais nunca foi uma tradição forte na Venezuela. Além disso, o governo não tem sido especialmente atento às exigências políticas de seus cidadãos.
Os governos da "era Puntofijo"
tiveram enormes poderes para se
defender contra insurgentes de
esquerda, nos anos 60; por conseguinte, os líderes políticos usaram
esses poderes para exercer controle e governar de forma a atender aos próprios interesses, dando pouca atenção às demandas
vindas de cidadãos -da classe
média ou pobres.
Entre 1988 e 1994, reformistas
da classe média fizeram progressos significativos para aumentar a
sensibilidade do governo e das elites políticas. Havia muitas reformas que deixaram o governo
mais próximo das pessoas (eleições para governadores e prefeitos) e dificultaram as elites políticas centrais de agir em benefício
próprio. Por um breve momento,
parecia que a Venezuela institucionalizaria uma democracia
mais profunda e atenta.
Essa tendência foi interrompida
pela longo declínio econômico,
intimamente ligado à redução de
arrecadação do governo. Os ganhos com a venda de petróleo declinaram. Todo o sistema Puntofijo ficou desacreditado porque
muitos dos que haviam ascendido
para a classe média voltaram para
as camadas pobres. A preocupação pela sobrevivência diária rapidamente ultrapassou as preocupações por um sistema político
mais representativo e até mesmo
pelo respeito aos direitos individuais.
O apoio a Chávez surgiu dos
"despossuídos", e Chávez rapidamente concluiu que, para ganhar
e manter o poder político, ele teria
de fazer algo diferente de seus antecessores.
Folha - O sr. argumenta que a política econômica chavista não difere das do passado, sobretudo a dependência do petróleo. Por que ele
não mudou as linhas gerais apesar
da retórica esquerdista?
Myers - A capacidade do governo Chávez de alocar recursos continua bastante dependente da exportação de petróleo. É a mesma
situação de seus antecessores da
"era Puntofijo", do regime Pérez
Jiménez e até mesmo antes. Ele teve sorte pelo fato de o preço do
petróleo ter-se mantido alto durante a maior parte de seu governo, de forma que ele tinha mais
recursos que seus antecessores.
Chávez está distribuindo subsídios aos pobres e, enquanto suas
reservas externas se mantiverem,
ele poderá usar recursos do Estado para comprar aquiescência
-para não dizer lealdade. No
momento, a Venezuela tem quase
US$ 24 bilhões de reservas estrangeiras à sua disposição.
Folha - Até que ponto Chávez faz
parte da ascensão da esquerda na
América Latina?
Myers - Chávez é um populista
militar. Ele é muito parecido com
o modelo de Perón -e, talvez,
com o de Vargas. Mas a época é
diferente. Chávez procura Fidel
Castro e militantes islâmicos para
afastar a influência dos EUA e das
democracias européias.
Folha - As relações entre Brasil e
Venezuela cresceram bastante com
Chávez, mesmo no governo Fernando Henrique Cardoso. Ao mesmo tempo, Chávez se distanciou de
Washington. A diplomacia é uma
das grandes mudanças de Chávez?
Myers - Na época da posse de
Lula, Chávez tinha muita esperança de que o novo presidente do
Brasil estabelecesse um regime radical de esquerda interessado em
desafiar o capitalismo global. Ele
queria se unir a Lula num esforço
para minar a influência global dos
EUA e das multinacionais.
Lula, porém, está fazendo um
jogo político mais sofisticado. Ele
trabalha com o sistema capitalista
internacional e com os EUA
-quando entende que seja do interesse do Brasil. Em outras palavras, é muito mais pragmático.
Chávez, que tem profundo desprezo pela influência americana,
não está feliz com o estilo Lula.
Folha - No livro, argumenta-se
que Chávez expandiu a influência
das Forças Armadas na política.
Trata-se de um novo risco para a
democracia venezuelana?
Myers - Os militares estão mais
politizados do que qualquer período desde o governo do general
Marcos Pérez Jiménez (1953-58).
Neste momento, a maioria dos
militares é leal a Chávez -não
tanto à Quinta República como
um regime político. No futuro,
eles poderiam transferir sua lealdade a outro líder carismático.
Até meados dos anos 90, a
maioria das Forças Armadas era
leal à Constituição de 1961. Chávez restaurou às Forças Armadas
o papel de árbitro político.
Folha - O sr. acredita numa normalização da política venezuelana
a curto prazo?
Myers - É altamente improvável.
Folha - O sr. acredita na possibilidade de uma intervenção americana na Venezuela?
Myers - Os EUA estão ocupados
com o Oriente Médio e a península coreana. Chávez continua vendendo petróleo para os EUA e,
sob condições de sua escolha, ele
tem até mesmo apontado uma
vontade de aumentar a capacidade de produção de petróleo. Com
essa política, faria pouco sentido
para o governo Bush intervir
abertamente na Venezuela.
Todavia, se o governo Chávez
começar a organizar um movimento internacional para coordenar forças dissidentes na Colômbia, no Equador, no Peru e na Bolívia, numa aliança de esquerda
(ou indigenista) radical, então os
EUA poderiam mudar para uma
intervenção ativa nos assuntos venezuelanos.
O objetivo seria encorajar oponentes a se unir para enfraquecer
o poder do governo Chávez e minar sua capacidade de agir no exterior. Não há nenhuma evidência
disso neste momento.
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