São Paulo, segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

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Guerra do tráfico fratura famílias

Por DAMIEN CAVE
CIUDAD JUÁREZ, México - Telma Pedro Córdoba poderia ter deixado esta cidade e suas marcas de sangue e balas quando seu marido foi morto no meio da rua em 2009, quando um ferimento afastou sua mãe do trabalho fabril e quando um vizinho foi assassinado em frente a um filho de três anos, meses atrás.
Mas ela ficou. Sua pequena casa de um dormitório, cuidadosamente decorada com estêncil vermelho e prata, é dividida com a mãe, a avó, a irmã, o irmão mais novo e dois filhos. Ao contrário dos vizinhos que abandonaram casas hoje saqueadas, essa é uma "família anclada", ou seja, uma família ancorada em Ciudad Juárez.
Pouco tempo atrás, essa expressão nem existia. Mas, nos últimos anos, a recessão e a violência do narcotráfico alteraram o caráter e a demografia desta fervilhante cidade, e a população minguou.
Em três anos, ela perdeu quase 20% da sua população ou cerca de 230 mil pessoas. E entrevistas e novas cifras do governo sugerem que os homens, que antes chegavam em ondas, estão partindo em número superior ao de mulheres.
O resultado é uma cidade com mais famílias como a de Telma: multigeracionais, chefiadas por mulheres, e com várias crianças menores de 14 anos.
Demógrafos dizem que a mudança se acelerou no último ano não só em Chihuahua, Estado do qual Juárez é a maior cidade. A proporção de mulheres também cresceu no ano passado em Tamaulipas, cenário de alguns dos mais cruéis assassinatos recentes. Lá e na Baixa Califórnia, onde fica Tijuana, o percentual de famílias com crianças pequenas também disparou, embora tenha permanecido estável em nível nacional.
"[A partida dos homens] é uma combinação de três coisas", disse Carlos Galindo, demógrafo e consultor do Conselho Populacional Nacional do México. "Está mais difícil encontrar emprego, a migração através do deserto é tradicionalmente uma coisa que os homens fazem, e há também a violência", afirmou ele.
Ciudad Juárez já teve precedentes disso. Nas décadas de 1970 e 80, quando as "maquiladoras" (montadoras) das indústrias de aparelhos eletrônicos começaram a se expandir, as mulheres inundaram o mercado de trabalho local em postos mal remunerados, superando os homens na proporção de cinco para um nas linhas de montagem.
Uma grande migração masculina para cá se seguiu, e o número de homens se equiparou ao de mulheres na população e nas fábricas. Agora, porém, segundo dados do governo e do setor privado, as mulheres parecem estar novamente virando maioria nas "maquiladoras".
Isso é, principalmente, um sinal de perseverança, não de prosperidade. Em entrevistas feitas na cidade, as mulheres citam homens que partem ou são mortos, e uma vida de adaptação para as famílias que ficam.
A recessão global atingiu em cheio este lugar. De 2008 a meados do ano passado, as "maquiladoras" cortaram cerca de 72 mil funcionários ou 30% do seu pessoal. Algumas dessas vagas agora estão sendo reabertas.
José Armendáriz Bailón, presidente da associação local de "maquiladoras", disse que 20 das maiores fábricas estão recontratando. Mesmo assim, o desemprego em Ciudad Juárez é de 7%, acima da média nacional em torno de 5%.
Quando Telma chegou a Ciudad Juárez 14 anos atrás, vinda do Estado de Oaxaca (sul), postos de trabalho eram tão abundantes quanto a areia. "Bastava sair andando na rua que havia emprego", disse ela. "Andava um pouco mais e havia outro emprego."
A professora de sociologia María del Socorro Velázquez Vargas, da Universidade Autônoma de Ciudad Juárez, disse que alguns moradores estão esperançosos.
"As pessoas não têm fé no governo", afirmou ela, numa semana em que a polícia federal matou a tiros dois moradores da cidade numa ação equivocada. "Elas têm fé nos seus vizinhos."
As estatísticas oficiais de criminalidade publicadas neste mês mostram que os homicídios na cidade caíram de recordes superiores a 300 em outubro e agosto para 166 em dezembro e 98 em janeiro.
Mas, numa cidade conhecida pela falta de relações sólidas, a pouca fé que existe parece brotar da autoconfiança dos moradores: as cinco pedras que barram o acesso a um bairro; os cães de guarda comprados comunitariamente em outro; os donos de armazéns em várias áreas que permaneceram abertos disfarçando seus estabelecimentos, pintando-os de branco, como casas, para ocultá-los de achacadores.
E há também o ativismo, frequentemente comandado pelas mulheres. Um grupo pode ser visto todo domingo, entrando com suas motos cor de rosa em bairros pobres para oferecer assistência.
Restam poucas dúvidas de que os moradores vivendo em meio a tal carnificina -foram cerca de 7.000 homicídios desde 2008- estão cada vez mais acostumados ao horror.
Gente como Telma pretende ficar. Mesmo que, no caso dela, isso signifique proteger seus filhos com uma cerca feita com restos de caixotes, num bairro esvaziado, de onde à distância se vê, de vez em quando, um avião azul pousar cheio de agentes da polícia federal, prontos para a guerra.


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