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Mudança franciscana
Papa altera normas penais do Vaticano, mas efeitos concretos devem ser maiores na questão da corrupção do que no combate à pedofilia
Em sua primeira homilia dirigida ao episcopado italiano na Basílica de São Pedro, em maio, o papa Francisco falou sobre a vigilância que os membros da Igreja Católica deveriam manter diante de seduções materiais e mundanas.
O discurso foi interpretado como um alerta ao corpo eclesiástico, abalado pelos recentes escândalos de pedofilia, de irregularidades na gestão do Banco do Vaticano e de vazamento de informações confidenciais do papa Bento 16.
Na semana passada, Francisco foi além do discurso. O papa aprovou uma reforma das leis penais do Estado do Vaticano, aumentando o rigor contra infrações sexuais e financeiras e transformando em delito a divulgação não autorizada de informações. A nova legislação entrará em vigor a partir de setembro deste ano.
Até as mudanças, a Santa Sé baseava suas normas penais na legislação italiana para o tema que vigorava no fim do século 19. Qualquer crime contra menor de idade era genericamente definido como abuso, e os crimes sexuais entravam na categoria dos atentados aos bons costumes. As penas iam de três a dez anos de prisão.
Agora foram criadas classificações específicas para as diferentes infrações: venda, prostituição, recrutamento, violência sexual, atos sexuais e produção ou posse de pornografia. As sanções previstas vão de cinco a dez anos de de prisão, com multa de até 150 mil euros.
A mudança legal dá continuidade à reforma iniciada por Bento 16, hoje papa emérito, que procura tornar o sistema da igreja mais transparente e condizente com as convenções e tratados em vigor na comunidade internacional --muitos deles ratificados pelo Vaticano.
O diretor da ONG americana Rede de Sobreviventes de Abusos de Padres, porém, reagiu com ceticismo ao afirmar que novas regras não são a solução para o problema da pedofilia. Na opinião de David Clohessy, é preciso que as autoridades eclesiásticas --a começar pelo papa-- apliquem duras punições aos infratores, um poder que sempre possuíram, mas que não tiveram disposição para usar.
Além disso, a alteração refere-se apenas às normas de Estado do Vaticano, não às de Direito canônico, válido para toda a igreja. Padres que cometam crimes sexuais continuarão sendo julgados segundo as leis dos países em que atuam, como não poderia ser diferente, e sob normas eclesiásticas que seguem inalteradas.
Não se pode negar o impacto simbólico das novas normas, mas seus efeitos concretos deverão ser mais sentidos em aspectos que interessam à direção do Vaticano --como corrupção e lavagem de dinheiro-- do que no combate à sensível chaga social da pedofilia.