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São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2003

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Democracia é conflito

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA


Um certo grau de conflito é inerente a qualquer democracia, mesmo às mais prósperas

A atual intensificação dos conflitos sociais preocupa os setores conservadores que priorizam a ordem em relação à justiça. Seus representantes afirmam o óbvio -a lei, a propriedade e os contratos devem ser respeitados- e exigem o que está longe de ser evidente: a repressão dos movimentos sociais. Será que existe motivo para tanta inquietação? Ou será esse aumento da tensão social favorável ao governo Lula?
Dado que o governo não se sente com coragem para inverter a equação perversa de altos juros e câmbio baixo, e assim alcançar a verdadeira estabilidade macroeconômica, talvez não reste ao povo alternativa senão protestar e pressionar por condições mínimas de emprego e sobrevivência.
Mas serão as pressões sociais a melhor forma de obrigar o governo a pensar por conta própria e a tomar as decisões de interesse nacional? O pensamento autoritário, seja ele de origem oligárquica, liberal clássica ou tecnocrática, dirá imediatamente que não -o pensamento oligárquico, porque é autoritário por definição; o pensamento liberal clássico, porque, para ele, a democracia representativa significa dar autonomia ao governo eleito para tomar decisões (que só poderão ser avaliadas pelos cidadãos nas próximas eleições); o pensamento tecnocrático, porque entende que a razão técnica deve sempre prevalecer.
E o que diz o pensamento democrático? Afirma que o conflito social e o debate público são dois elementos constituintes das democracias modernas. Não existe democracia sem convivência com conflitos e sua solução através do compromisso ou da argumentação, ou de uma combinação de ambos. Marilena Chaui deixou clara essa idéia quando disse, nesta Folha (3/8/03): "Em vez de falar em crise e em desordem, que são os temas preferidos da classe dominante brasileira na sua tradição autoritária, é hora de comemorarmos o fato de que finalmente este país está conhecendo uma experiência democrática. Democracia não é, como querem os liberais, o regime da lei e da ordem. Democracia é o único regime político no qual os conflitos são considerados o princípio mesmo do seu funcionamento".
Para afirmar que os conflitos constituem o princípio de funcionamento da democracia, Marilena não precisava acrescentar que a democracia não é o regime da lei e da ordem. A democracia é o regime do conflito social, da argumentação e do compromisso, mas é também o regime da lei e da ordem.
Entre conflito e ordem existe uma contradição que os regimes democráticos estão pensados para resolver. A idéia de que o império da lei é uma terceira solução entre o regime autoritário dos sábios e a alegada desordem da democracia foi uma ilusão do liberalismo clássico. Afinal, a própria lei jamais é neutra e está longe de resolver bem todos os problemas. A democracia superou esse tipo de liberalismo exatamente porque se revelou o regime político mais capaz de combinar a lei com o conflito social, a ordem com as demandas contraditórias das classes sociais e dos grupos de interesse.
No Brasil, enfrentamos hoje dificuldades devido ao mau desempenho da economia. Desde 1980 o crescimento do PIB é insuficiente para absorver a oferta de mão-de-obra, de forma que o desemprego e a insatisfação aumentam, o que resulta em protesto social e no crescimento da criminalidade. Um certo grau de conflito é inerente a qualquer democracia, mesmo às mais prósperas. É um conflito pela repartição de renda -definida, pelo mercado, através dos preços e, pelo Estado, através das leis e políticas públicas. O conflito no mercado expressa-se na competição; o conflito no plano do Estado, na política democrática.
No momento, no Brasil, não são apenas os pobres que promovem o conflito, nas ações do MST e dos sem-teto. Também a baixa classe média o faz, por meio das centrais sindicais; a classe média alta, através de movimentos como os dos juízes e das associações profissionais e empresariais. Os ricos, por sua vez, participam do conflito por intermédio de suas organizações, do domínio da mídia, do financiamento das campanhas políticas, do emprego de intelectuais para defender suas posições.
A diferença fundamental está no fato de que os mais ricos defendem posições -senão privilégios- em nome da lei, e os mais pobres buscam conquistar posições que muitas vezes só podem ser atingidas desafiando e mudando a lei. Ao governo não resta alternativa senão manter a ordem, exigir o respeito à lei. Senão não será governo. Mas, se for democrático, garantirá a liberdade do protesto e buscará atender, na medida do possível, as reivindicações. Se for autoritário, tentará apenas impor a ordem.
No quadro social e político brasileiro, não vejo perigo de rompimento da ordem ou da governabilidade. Os conflitos sociais aumentaram, como era de esperar, mas são inerentes à democracia -uma democracia que, no Brasil, está consolidada. Não há por que temer que o governo não consiga enfrentar o problema, combinando a garantia da lei com o atendimento parcial das reivindicações. Há, porém, boas razões para temer que o governo e as elites fracassem, como vêm fazendo há 20 anos, em atacar as causas econômicas do conflito.


Luiz Carlos Bresser Pereira, 69, é professor de economia na FGV-SP. Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo FHC), além de ministro da Fazenda (governo Sarney).

Site: www.bresserpereira.org.br



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