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TENDÊNCIAS/DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
A vida privada de pessoas públicas deve ser objeto de debate político?
NÃO
O jogo político não é reino do vale-tudo
LUIZ BERNARDO LEITE ARAUJO
UMA QUESTÃO controversa da
discussão política em sociedades democráticas é a da delimitação de fronteiras entre esfera
privada e esfera pública.
À primeira vista, trata-se de distinção trivial, valendo para a segunda esfera apenas aquilo que é genericamente definido como pertencente ao
domínio público, que diz respeito ao
interesse geral dos cidadãos.
Entretanto, toda tentativa de fixar
de uma só vez e para sempre a forma e
o conteúdo do discurso político resultou, senão em fracasso, certamente
em novas e infindáveis controvérsias.
Quais argumentos são aceitáveis do
ponto de vista da cidadania democrática? Há temas intratáveis que deveriam ser excluídos da agenda política?
Tais questões suscitam, desde logo,
intenso debate entre os membros de
uma comunidade política e trazem a
lume o caráter complexo da referida
diferenciação.
Os defensores de uma visão aberta,
inclusiva e irrestrita de temas na esfera política costumam recordar, não
sem razão, que as fronteiras entre o
público e o privado são fluidas e porosas. O que ontem não contava como
argumento a ser ponderado pode subitamente adquirir relevância, o que é
atestado no caso recente da introdução de doutrinas religiosas por cidadãos que, sem anular a natureza laica
do Estado constitucional, rejeitam o
secularismo como ideologia dominante. O que antes era tido como assunto estritamente privado, como a
relação entre marido e mulher -em
cuja briga, rezava o dito popular, ninguém mete a colher!-, tornou-se matéria legítima de discussão pública
com base no desvelamento progressivo de casos de violência doméstica.
Entretanto, a adoção de uma concepção dinâmica de esfera pública,
permeável a toda sorte de argumentos e tópicos que permitam o exercício pleno da autonomia dos indivíduos e favoreçam uma saudável diversidade de crenças e opiniões, não
implica ausência de critérios fundamentais de convivência democrática.
Entre tais critérios avulta a proteção
da esfera íntima, que, por boas razões
normativas, deve ser resguardada da
invasão alheia.
Evidentemente, a cada um é dada a
liberdade de manifestar-se publicamente, se assim o desejar, sobre seu
modo particular de vida, mas ninguém pode ser obrigado, contra sua
própria vontade, a tornar pública
uma identidade cuja constituição não
abale o princípio da igualdade cívica.
O tema da orientação sexual é, neste
aspecto, particularmente eloqüente.
Com efeito, quem ousaria dizer que
se trata de matéria não-pública diante de tanto sofrimento impingido a
indivíduos e grupos no seio de sociedades dominadas por padrões de conduta tidos como modelares?
Por outro lado, e sem intento polêmico, o que impediria uma objeção
naturalista a determinados comportamentos, fundada em raciocínio ainda sujeito ao desacordo razoável?
Se o que deve predominar na esfera
pública são razões publicamente
acessíveis a todos os cidadãos, não parece haver justificativa aceitável para
o silenciamento de opiniões discordantes em face de questões que dividem os espíritos. Porém, pelas mesmas razões, o respeito pela integridade moral do outro é exigível de todos à
luz de um dever recíproco de civilidade, constitutivo de uma sociedade democrática pluralista.
Há uma fronteira razoavelmente
delimitável entre discordância e intolerância. Não estar de acordo com o
que se julga ser uma conduta errônea
de vida -e ter o direito de manifestar
publicamente tal desacordo- não é a
mesma coisa que disseminar preconceito e semear ódio ou aversão à pessoa do outro. E pouco importa, no que
tange à intimidade da vida privada, se
se trata do cidadão ordinário ou da
pessoa pública. A esta última impõem-se, é claro, obrigações específicas decorrentes de uma função institucional que porventura exerça, não
podendo alegar intromissão indevida
no âmbito privado quando se trata,
por exemplo, de prestar contas sobre
sua situação financeira antes e depois
do efetivo exercício da função.
Mas a vida privada no seu conjunto? Todo e qualquer aspecto de seu
ser no mundo? Não. O jogo político
não é reino do vale-tudo e nem tudo o
que é sórdido se desmancha no ar.
LUIZ BERNARDO LEITE ARAUJO, doutor em filosofia pela Universidade de Louvain (Bélgica), é professor de ética
e filosofia política da Uerj (Universidade do Estado do Rio
de Janeiro). É autor de "Religião e Modernidade em Habermas" (Loyola), entre outras obras.
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