São Paulo, domingo, 29 de dezembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Lula e a autoridade

DENIS LERRER ROSENFIELD

O presidente eleito não economizou nos atos simbólicos de afirmação de sua autoridade. Em meio às tratativas que levaram à composição da atual equipe de governo, Lula deixou claro, desde o início, que estava disposto a assumir a posição que lhe cabe de direito, a saber, de autoridade máxima do país. Essa formulação pode parecer um truísmo, porém ela é reveladora de que há em curso um rompimento com determinadas práticas do PT nos níveis estadual e municipal, em que o partido deliberava sobre o secretariado.
Observe-se que o presidente eleito comunicou à direção partidária o novo ministério, não se remetendo a esta como instância decisória. A Democracia Socialista, ala à esquerda do partido, por exemplo, constatou esse fato expressando o seu descontentamento.
A escolha de Henrique Meirelles para a presidência do Banco Central foi a ocasião para o enquadramento do setor esquerdista do partido, em que os protestos da senadora Heloísa Helena foram em vão. Com razão, a senadora reclamava de questões programáticas abandonadas pelo partido. O processo de social-democratização forçada do PT deixa seus órfãos no caminho, o partido sinalizando que atuará unido na defesa das posições governamentais.
As palavras do futuro ministro-chefe da Casa Civil não foram nada amenas -com vigor, afirmou que dissidências não serão toleradas. Uma ocasião dessa não poderia passar em vão, sob pena de dar, no futuro, livre curso a uma desorganização partidária, em que cada tendência poderia votar a seu bel-prazer.
A escolha dos ministros Rodrigues, um ruralista, Furlan, representante do setor de agribusiness, e Meirelles, ex-presidente do BankBoston, indicou igualmente uma composição com os grupos empresariais e financeiros, independentemente dos matizes partidários. Ao optar por "neoliberais" -no dizer das tendências esquerdistas do partido-, Lula não sinalizou apenas aos mercados, mas ao seu próprio partido, a sua autoridade. Trata-se agora de governar o país segundo os princípios de uma economia capitalista. É como se dissesse: "Os discursos de antanho devem ser abandonados".
Lula, no entanto, advertiu também os seus próprios ministros de que a sua autoridade seria exercida presidencialmente. Nem bem escolhido ministro, Luiz Fernando Furlan teve de engolir a nomeação de Carlos Lessa para a presidência do BNDES, sem ter sido consultado. A margem de manobra dos ministros estaria circunscrita aos ditames da autoridade governamental, não lhes sendo dada a latitude de escolha dos seus principais assessores.


Premido pelas necessidades de governar, Lula está optando rapidamente pelo exercício da autoridade


Um dos embates mais interessantes do futuro governo será travado, no plano socioeconômico, entre os ruralistas, defensores da grande propriedade rural de alta produtividade, responsável por parte significativa de nossa pauta de exportações, e o MST, que defende a extinção da grande propriedade, denominada, sem mais, de latifúndio. No plano político, ele se traduzirá pelo conflito de competências entre o ministro da Agricultura, Fernando Rodrigues, e o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto. Se questões de princípio estarão aqui envolvidas, não cabe superdimensiona-las a partir de uma oposição entre direita e esquerda.
Primeiro, porque, nesses seus passos iniciais, o presidente eleito tem dado mostras de que não se pautará exclusivamente por essa distinção histórica. Segundo, embora a escolha de Rossetto tenha sido aplaudida pelos setores mais à esquerda do partido, ela pode também ser lida sob a ótica de que Lula escolheu alguém de esquerda para negociar com a própria esquerda, colocando esse setor do partido numa posição de eventual desgaste se as negociações não forem bem-sucedidas. Além do mais, Rossetto, como vice-governador do Rio Grande do Sul, pautou sua conduta pela eficiência administrativa e pelo bom nível de diálogo com os empresários.
Por último, o episódio das negociações frustradas com o PMDB foi a oportunidade aproveitada pelo presidente eleito para desautorizar publicamente José Dirceu, homem forte do governo. Dirceu tem plena consciência dos problemas que o novo governo enfrentará nas negociações com o Congresso, de onde sua convicção de que deveria haver concessões em nome da governabilidade. Tendo contrariado interesses do PT e do próprio PMDB, ele foi forçado a recuar, deixando um flanco aberto no relacionamento com o Legislativo.
Lula pautou a sua campanha na disposição do diálogo contínuo e incessante, porém, premido pelas necessidades de governar -logo de decidir-, está também optando rapidamente pelo exercício da autoridade. Num país como o Brasil, afeito a concessões particulares e corporativas, esse exercício pode ser um bom augúrio, sempre e quando o trabalho de composição com o Congresso for perseguido com igual afinco.


Denis Lerrer Rosenfield, 50, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


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