São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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CRÍTICA

A natureza, os animais, a ideologia

EUGÊNIO BUCCI

AMANADA de gazelas recobre as planícies da África do Sul. Chove, ou melhor, a água cai como uma dádiva dos deuses, segundo o narrador. As gazelas comemoram saltando no ar fresco e limpo, como ele diz. Ah, sim, e a relva está em flor. O corvo negro busca abrigo não sei onde. Um cágado caminha no meio dos filhotes, fato que parece excitar, ainda que num nível discretíssimo, o dono da voz horizontal e inalterável. Certamente é o primeiro cágado que esses filhotes vêem, ele informa com seu timbre platiforme, tão plano quanto a topografia que descreve. O cágado caminha. A reportagem do Discovery Channel sobre o "mundo natural" vai no mesmo passo.
Não se diga que é chata. Isso não. É possível que programas desse tipo cumpram um papel que nada tem a ver com chatice. Eles talvez funcionem como um descanso ideológico, mais ou menos como um asilo político para o telespectador, sobretudo em períodos de intensa propaganda política, como o presente. Bombardeado pelos reclamos dos partidos, o eleitor busca refúgio em atrações mais amenas. Como essa do Discovery. As novelas não podem cumprir o mesmo papel, pois também são feitas de disputas baixas e perversas, seja por amor, seja por dinheiro, seja por poder. Tampouco os telejornais, abarrotados que ficaram de entrevistas e debates. Os shows de variedades foram igualmente invadidos. Só mesmo atrações no estilo do "Globo Repórter" podem dar descanso ao público perseguido pela neurose eleitoral. A vida dos bichos irracionais, por não ser humana, é apolítica e sem história. Portanto, repousa a cabeça do público, protegendo-o da caça predatória que lhe movem os candidatos. Um perfeito refúgio ou, mais exatamente, um asilo.
Ou melhor, um asilo efêmero, pouco eficaz, um asilo apenas aparente. Observe-se, por exemplo, a cena específica em que um leão, depois de mastigar um naco de sua presa, ergue a fronte de tal modo que deixa ver uma enorme ferida aberta, bem no meio da testa. Levou um coice de uma zebra, conta o inabalável narrador, que, na seqüência, adverte: "O leão teve sorte em sobreviver". Consta que algumas zebras desferem coices fatais em seus predadores. Daí a sutil admoestação que paira contra o rei dos animais. Ele teve sorte. Há um tom mais ou menos moralizante na fala aparentemente neutra do narrador. Ele insinua que teria faltado cuidado ao leão. Ou força à zebra. Alguém teria tido culpa no episódio. Alguém teria sido castigado. O que termina por enfraquecer a hipótese de que programas sobre natureza sejam de fato um asilo político. Categorias como culpa, castigo, merecimento ou justiça são categorias demasiadamente humanas e, transpostas para os herbívoros e carnívoros que habitam as planícies da África do Sul, não fazem esquecer as neuroses humanas, mas intensificam a presença delas na pobre cabeça do telespectador.
Assim, os programas sobre natureza, que na superfície são apolíticos e sem história, antropomorfizam os bichos, transformam os seus personagens não-humanos em protagonistas de aventuras trágicas, épicas ou melodramáticas. Humanas, enfim. O que no fundo não deveria ser surpresa. O discurso sobre a natureza é, pelo menos desde Darwin, profundamente marcado pela obsessão de vitória sobre o adversário. É de um liberalismo panfletário e atroz. O discurso sobre a natureza, a pretexto de descrever o mundo animal, revela sem máscaras as estruturas ideológicas da nossa natureza humana. É o elogio do mais apto, do mais veloz, do mais audaz. Nas matérias sobre natureza, os bichos encenam os nossos piores pesadelos de ambição e de morte.
Pensando melhor, programas sobre os animais irracionais não servem de alternativa ao combate selvagem que os candidatos travam entre si. Os bichos são outros, mas a narrativa é a mesma.



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