São Paulo, domingo, 29 de dezembro de 2002

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CRÍTICA

"Seja feliz! Isto é uma ordem!"

EUGÊNIO BUCCI

Imagine a seguinte situação. Você está por aí, digamos, passeando num shopping, depois de ter ido à festa da firma, à ceia de natal na sala da sogra, que foi melancólica, e ainda não criou coragem para enfrentar o prestigioso Réveillon no apartamento bonito daquele casal de amigos, que promete ser cansativo. Então, de repente, surge do nada, diante da sua fatigada figura, um comandante militar com cara de sargento prestes a gritar "Sentido!" e passa a vociferar, a dois palmos dos seus olhos, entre perdigotos balísticos e um certo hálito de vampiro, um comando que é meio difícil de entender: "Seja feliz! Isto é uma ordem!". Você não consegue acreditar naquilo direito, está atordoado, não faz a menor idéia de onde saiu aquela figura, aquele militar histérico, pensa que caiu dentro de um filme de guerra, pensa que está diante do general Patton no meio da sessão da tarde, e ele, o general Patton, com sua cara rubra, borbulhante, e seu traje cáqui, impecável, repete, aos brados: "Seja feliz! Isto é uma ordem!".
Pronto. Fim da cena imaginária. Você não precisa mais se imaginar nessa situação absurda. Pode descansar, soldado. Passemos, agora, já mais relaxados, a pensar um pouco sobre a cena construída no parágrafo anterior. Comecemos pelas perguntas mais simples: será que a tal cena faz sentido? Será possível que alguém seja feliz por obediência? A felicidade pode ser produzida por um comando, por uma ordem?
Claro, qualquer um responderá que não. A idéia de felicidade, por mais precária que seja entre nós, supõe um grau mínimo de liberdade. A gente é feliz quando faz o que quer, mesmo que ninguém consiga saber direito o que quer e o que deseja. Feliz é quem sabe o que quer e o que deseja (querer e desejar são níveis diferentes do ser) e se concilia com isso. A idéia de felicidade, portanto, nos parece incompatível com a condição do reco que bate continência e grita "Sim-senhor!". Pode até haver algum tipo de prazer em deixar-se dominar, mas não há felicidade nisso. A felicidade, pensamos, e pensamos com razão, não se impõe.
Não obstante, a felicidade nos é imposta como obrigação. Digo isso a propósito da massa cada vez mais avassaladora da publicidade natalina e da programação "felicidificante" que toma conta da TV quando chegam as festas de fim de ano. As criancinhas produzidinhas multiculturaizinhas e devidamente multiétnicas entoam em torno da árvore de Natal a velhíssima canção "hoje é um novo dia de um novo tempo" etc. A moça linda chora porque ganhou um anel. Roberto Carlos geme num acorde perfeito maior. Os astros têm dentes alvos modelados na ortodôntica indústria do entretenimento e sorriem seus sorrisos pré-fabricados. Os embrulhos de Natal e os votos de feliz Ano Novo se confundem num único e ininterrupto imperativo: "Seja feliz! Isso é uma ordem!".
É incrível como o discurso que reprime se esconde por trás do discurso que vende a felicidade como a mais preciosa das mercadorias. O discurso da TV, que é o discurso do comércio disfarçado de informação e diversão, que procura estabelecer os padrões de comportamento, obriga o telespectador a ser feliz. Como se fosse um general ou um feitor de escravos, de chicote na mão. Um comandante que ordena: "Goze, seja feliz, seu verme inútil e tristonho!". O inferno, quem diria?, é feito de votos de felicidade comercial. Que não são votos, mas ordens: "Compre, embriague-se de mercadorias. E depois ache tudo ótimo, inenarrável, um orgasmo como nunca você experimentou antes!". Só há felicidade na obediência e no consumo.
Isso tudo já foi dito antes, mas não importa. Para 2003, eu tinha sonhado apenas com um pouco mais de melancolia. E de liberdade. E que o general da publicidade ficasse gritando sozinho, feito um Patton enlouquecido e ineficaz.


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