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CRÍTICA
"Seja feliz! Isto é uma ordem!"
EUGÊNIO BUCCI
Imagine a seguinte situação. Você está por aí, digamos, passeando num shopping, depois de ter ido à festa
da firma, à ceia de natal na sala da sogra, que foi melancólica, e ainda não criou coragem para enfrentar o prestigioso Réveillon no apartamento bonito daquele casal de
amigos, que promete ser cansativo. Então, de repente, surge
do nada, diante da sua fatigada figura, um comandante militar com cara de sargento prestes a gritar "Sentido!" e passa a
vociferar, a dois palmos dos seus olhos, entre perdigotos balísticos e um certo hálito de vampiro, um comando que é
meio difícil de entender: "Seja feliz!
Isto é uma ordem!". Você não consegue acreditar naquilo direito, está
atordoado, não faz a menor idéia de
onde saiu aquela figura, aquele militar histérico, pensa que caiu dentro
de um filme de guerra, pensa que
está diante do general Patton no
meio da sessão da tarde, e ele, o general Patton, com sua cara rubra,
borbulhante, e seu traje cáqui, impecável, repete, aos brados: "Seja feliz! Isto é uma ordem!".
Pronto. Fim da cena imaginária.
Você não precisa mais se imaginar nessa situação absurda.
Pode descansar, soldado. Passemos, agora, já mais relaxados,
a pensar um pouco sobre a cena construída no parágrafo anterior. Comecemos pelas perguntas mais simples: será que a
tal cena faz sentido? Será possível que alguém seja feliz por
obediência? A felicidade pode ser produzida por um comando, por uma ordem?
Claro, qualquer um responderá que não. A idéia de felicidade, por mais precária que seja entre nós, supõe um grau mínimo de liberdade. A gente é feliz quando faz o que quer, mesmo que ninguém consiga saber direito o que quer e o que deseja. Feliz é quem sabe o que quer e o que deseja (querer e desejar são níveis diferentes do ser) e se concilia com isso. A
idéia de felicidade, portanto, nos parece incompatível com a
condição do reco que bate continência e grita "Sim-senhor!".
Pode até haver algum tipo de prazer em deixar-se dominar,
mas não há felicidade nisso. A felicidade, pensamos, e pensamos com razão, não se impõe.
Não obstante, a felicidade nos é imposta como obrigação.
Digo isso a propósito da massa cada vez mais avassaladora da
publicidade natalina e da programação "felicidificante" que
toma conta da TV quando chegam as festas de fim de ano. As
criancinhas produzidinhas multiculturaizinhas e devidamente multiétnicas entoam em torno da árvore de Natal a velhíssima canção "hoje é um novo dia de um novo
tempo" etc. A moça linda chora porque ganhou um anel. Roberto Carlos geme num
acorde perfeito maior. Os astros têm dentes
alvos modelados na ortodôntica indústria
do entretenimento e sorriem seus sorrisos
pré-fabricados. Os embrulhos de Natal e os
votos de feliz Ano Novo se confundem
num único e ininterrupto imperativo: "Seja
feliz! Isso é uma ordem!".
É incrível como o discurso que reprime se
esconde por trás do discurso que vende a
felicidade como a mais preciosa das mercadorias. O discurso da TV, que é o discurso
do comércio disfarçado de informação e diversão, que procura estabelecer os padrões de comportamento, obriga o telespectador a ser feliz. Como se fosse um general ou um feitor de
escravos, de chicote na mão. Um comandante que ordena:
"Goze, seja feliz, seu verme inútil e tristonho!". O inferno,
quem diria?, é feito de votos de felicidade comercial. Que não
são votos, mas ordens: "Compre, embriague-se de mercadorias. E depois ache tudo ótimo, inenarrável, um orgasmo como nunca você experimentou antes!". Só há felicidade na
obediência e no consumo.
Isso tudo já foi dito antes, mas não importa. Para 2003, eu tinha sonhado apenas com um pouco mais de melancolia. E de
liberdade. E que o general da publicidade ficasse gritando sozinho, feito um Patton enlouquecido e ineficaz.
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