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ANÁLISE
Cinema é cerebral, mas não racionalista
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
"Glória Feita de Sangue"
era como um imenso jogo
de xadrez esférico: os generais
eram os reis encastelados; o coronel (Kirk Douglas) era, em seus
movimentos perpendiculares da
trincheira à caserna, o cavalo; e os
soldados, os peões obrigados a
andar para frente.
Stanley Kubrick, que chegou a
se sustentar na juventude jogando
xadrez na Washington Square,
nunca deixou de comparar a realização de um filme a um jogo de
xadrez. Ambos eram, para ele,
uma espécie de batalha mental. A
intensidade e a capacidade de
concentração garantiram-lhe,
desde cedo, a vitória nesse campo.
A cada filme uma surpresa, a cada surpresa uma polêmica, a cada
polêmica um novo sucesso: Kubrick conseguiu aprofundar as
obsessões as mais inconfessáveis
sem perder os produtores e o público de vista -ao menos até
"Barry Lyndon", filme que marca
seu primeiro fracasso, mas também o paroxismo de sua habilidade de mise en scène, o auge de seu
domínio do "específico fílmico".
Se John Cassavetes, outro grande gênio do cinema americano do
pós-guerra, subverteu o esquema
da decupagem clássica ao submeter o tempo e o espaço à verdade
do corpo, Kubrick esteve sempre
a encenar o cérebro e a ver o mundo como uma projeção deste.
A mansão fantasmagórica de
"O Iluminado" é a extensão da
mente doente do personagem de
Jack Nicholson; a grande mesa redonda e luminosa de "Dr. Fantástico" é o cérebro enlouquecido de
um sistema (militarista) que ruiu.
O cinema de Kubrick é o mais cerebral, mas não o mais racionalista. Não fez mais do que escancarar a fissura no projeto racionalista ocidental que a talentosa geração hollywoodiana dos anos 50 já
sintomatizava.
Essa fissura, ilustrada de resto
pelo périplo do protagonista de
"Laranja Mecânica", de delinquente social a vítima da violência
do Estado, encontra seu exemplo
mais evidente na falha de Hal
9000, o supercomputador de
"2001 - Uma Odisséia no Espaço".
Tornando-se homicida, Hal revela, tal como as criaturas de "A.I.
- Inteligência Artificial" (roteiro
que Kubrick legou à "sensibilidade" de Spielberg), o perigo de um
divórcio entre homem e técnica.
Em "2001" (viagem cerebral e
cósmica que resulta da soma IBM
+ LSD), a técnica se volta contra o
homem, e, em "A.I.", é o homem
que renega impiedosamente uma
técnica tornada demasiado humana. Não por acaso, uma das
maiores obsessões de Kubrick era
o Holocausto judeu, fruto desta
que foi a maior fissura do projeto
racionalista da civilização ocidental e uma prova definitiva do perigo que é o homem não estar à altura da sua técnica.
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