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Cinemateca exibe "Fragmentos de Vida", raro filme de 1929, dirigido por José Medina
Testemunha ocular
Foto divulgação
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Cena da comédia 'Fragmentos de Vida', de José Medina, presente em ciclo da Cinemateca |
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
José Medina teve a mesma
sorte que a maior parte dos cineastas brasileiros da época muda: seus três longas-metragens
desapareceram no incêndio de
um laboratório, segundo informa
José Inácio de Melo Souza na "Enciclopédia do Cinema Brasileiro".
O que restou serve para situá-lo
como, provavelmente, o mais talentoso dos realizadores paulistas
dos anos 20. "Fragmentos de Vida", comédia que a Cinemateca
Brasileira exibe hoje, é uma bela
demonstração desse talento.
Medina narra ali a história de
um vagabundo que tenta, de todos os modos, ser preso e passar
uns tempos como "pensionista
do governo". Tem a seu lado um
amigo, amoral, que não se aperta
e prefere roubar para sobreviver.
O problema é que o vagabundo
faz a barba -para chegar apresentável à prisão- e adquire com
isso um ar respeitável. De modo
que cada má ação que pratica tende a torná-lo cada vez mais bem-visto, cada vez mais um cidadão
acima de qualquer suspeita.
Pode-se ver essa fábula a partir
da premissa do reacionarismo
paulista -não estaremos longe
dessa gente que considera a cadeia uma pensão estatal para vagabundos; essa visão se encaixa
com o outro filme conhecido de
Medina, "Exemplo Regenerador"-, padrão de caretice. O final irônico, no entanto, dá conta
de uma evolução evidente.
É possível vê-lo de outra forma:
o filme é feito em 1929, momento
de transformação de São Paulo
em uma grande cidade, onde as
pessoas se tornam desconhecidas
umas das outras, onde distinguir
o homem de respeito do vigarista
se torna um problema.
O essencial de Medina, no entanto, vem da decupagem -a divisão do filme em planos-, setor
em que é mestre. É um realizador
que sabe como poucos dispor sua
câmera de acordo com a intensidade da cena, passar de um plano
a outro com elegância, colocar essas virtudes a serviço da fluência
da narrativa. Conjuga essas qualidades a uma direção de atores
cheia de imaginação. Que a imaginação venha dele ou dos atores
importa pouco: o certo é que em
"Fragmentos de Vida" o quadro
está sempre animado por um gesto ou expressão que lhe dão graça.
Medina (1894-1980) abandonou
o cinema em seguida, e se dedicou
sobretudo ao rádio, onde chegou
chamado por Octavio Gabus
Mendes, outro talento que também optou por deixar o cinema.
Marginal
"Fragmentos de Vida" faz programa hoje com "Meteorango
Kid, Herói Intergalático", de André Luiz Oliveira, e "Bang-Bang",
de Andrea Tonacci. São dois dos
principais exemplares do cinema
dito marginal que existiu no Brasil entre o fim dos 60 e o começo
dos 70. Ao contrário de "Fragmentos", os dois foram exibidos
em São Paulo há não muito tempo. Ambos são talentosíssimos, e
quem não pôde vê-los não deve
desprezar essa oportunidade.
Convém lembrar que esses filmes estão inseridos num ciclo que
marca a reabertura da Sala Cinemateca. A Cinemateca Brasileira,
que passou por momentos atrozes, vive uma de suas melhores fases, com a consolidação da sede
própria do Matadouro e a inauguração do Arquivo de Matrizes.
Com o setor de preservação
mais estável, espera-se que seja
possível à instituição voltar a dedicar-se à difusão e abrir o seu
baú. Entre brasileiros e estrangeiros, existem ali muitas raridades a
serem dadas a ver ao público.
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