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ENTREVISTA
Historiador não acredita na viabilidade do Mercosul a longo prazo e duvida da liderança do Brasil na América Latina
Lula tem política externa confusa, diz Maxwell
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
Há "confusão" maior na política
externa brasileira do que em qualquer outra área do governo, avalia
o historiador inglês Kenneth Maxwell. Membro em Nova York do
Conselho de Relações Exteriores
-uma das principais instituições
de estudos na área no mundo, responsável pela publicação da revista "Foreign Affairs"-, o brasilianista é cético quanto às possibilidades de sucesso das principais
apostas do Itamaraty sob Luiz
Inácio Lula da Silva.
Mercosul, por exemplo. Maxwell diz não acreditar na sua viabilidade como alternativa de longo
prazo. Isso por tratar-se de uma
união aduaneira em que os dois
principais parceiros "são vulneráveis às idiossincrasias de investidores externos".
Sobre a tentativa brasileira de se
firmar como a principal liderança
na América do Sul, ele responde
que "uma liderança precisa de seguidores". E completa: qualquer
país vizinho optaria pelos EUA
em detrimento do Brasil, dada a
oportunidade de acordo bilateral.
Maxwell elogia, entretanto, de
maneira entusiasmada, a política
econômica de Lula, que ele não
credita como mera continuidade
da seguida no governo de Fernando Henrique Cardoso. Para o historiador, a aprovação de apenas
"60% das reformas" já permitiria
o início do processo de diminuição da vulnerabilidade externa do
país, queda da taxa de juros e retomada do crescimento.
Leia a seguir trechos da entrevista, realizada por e-mail ao longo
da semana passada.
Folha - O sr. disse, logo após as
eleições, que o risco de uma crise de
confiança continuava a se impor sobre o Brasil e que os primeiros seis
meses seriam perigosos e frágeis.
Algo muda depois desse prazo? A
tal confiança dos mercados não
precisa ser conquistada permanentemente?
Kenneth Maxwell - Há duas
questões distintas aí. A primeira
tem a ver com a histeria do mercado [durante as eleições] -baseada numa leitura equivocada da
personalidade de Lula, o que, agora vemos, era infundado. Mas esse
medo tinha que ser enfrentado de
frente e rapidamente. Eu não tinha a menor dúvida no ano passado de que um governo Lula seguiria uma receita de política econômica ortodoxa no início. Isso porque não havia alternativa -precisavam acalmar o mercado, estavam obrigados a seguir o acordo
acertado com o FMI, precisavam
aplicar um choque de credibilidade e perceberam que não podiam
se dar ao luxo de falhar, pois não
teriam uma segunda chance. Tudo isso é, entretanto, questão conjuntural. Uma vez que a confiança
foi restabelecida, já que a histeria
se baseava no medo e não em fatos, a recuperação devia ser rápida
e intensa, e é isso que temos testemunhado na queda do risco Brasil, na valorização do real e no retorno de algum fluxo de capital e
linhas de crédito.
Uma segunda questão tem a ver
com o longo prazo e é mais difícil,
dadas as reais debilidades estruturais e vulnerabilidades herdadas.
Ironicamente, essas foram subestimadas pelos mercados. Isso porque eles compraram a idéia de que
o que o Brasil precisava era da
continuidade da política de FHC.
Do meu ponto de vista, a situação era insustentável -pois aquela política tinha tornado o país extremamente vulnerável e dependente de fluxos de capital externo.
E vale lembrar que, apesar do ambiente externo favorável nos anos
90, o Brasil foi obrigado a recorrer
duas vezes aos empréstimos do
FMI.
Logo, essa persistente vulnerabilidade externa é preocupante e
explica o fato de o governo buscar
simultaneamente manter os investidores calmos enquanto avança com reformas (a previdenciária
e a tributária) fadadas a serem vistas como impopulares.
Os benefícios serão enormes se
essa mudança tão difícil for alcançada, embora de fato seja ainda
cedo para saber se tudo vai funcionar perfeitamente e recolocar o
Brasil num caminho de menor
vulnerabilidade e dependência
externa. O risco de retrocesso e de
retorno da histeria ainda existem,
e permanecerão existindo enquanto não forem superadas as
debilidades do país. É isso que vai
estar em jogo nos próximos seis
meses. E haverá uma dura resistência à mudança. Como nos
mostra a França, a tentativa de reformar a aplicação ineficiente de
recursos não é fácil -e a malversação de recursos na França é uma
pálida sombra daquilo que acontece no Brasil
Folha - O sr. crê numa "fase dois"
da economia? A lógica de gerenciar
as expectativas do mercado não a
inviabiliza? Como crescer com a
atual taxa de juros?
Maxwell - Sim, creio que é possível, e além disso ela é essencial. Se
as reformas avançarem ao longo
dos próximos meses -mesmo se
apenas 60% delas forem concretizadas-, creio que os índices de
crescimento para o próximo ano
já poderão ser maiores e que o governo com isso possa ter a habilidade de investir esses recursos em
programas sociais, educação, infra-estrutura e diminuição da vulnerabilidade do país a choques externos. Conseguir isso é importante não só para Lula e o PT, mas
para o Brasil. A alternativa seria
um renovado ciclo de dependência e a renovação das desigualdades estruturais.
Folha - Há algum ceticismo no
Brasil, inclusive da própria Fiesp,
sobre a possibilidade de grande
mudança a partir das reformas. Por
que o sr. afirma que elas são tão importantes para superar a dependência externa?
Maxwell - Para começar, se as reformas passarem, o impacto será
bastante positivo no exterior. Demonstrará de maneira decisiva
que o governo é capaz e sério
quando se trata de lidar com assuntos domésticos conflitivos,
que muitos por muito tempo disseram ser essenciais, incluindo o
governo anterior, mas que sucessivos governos brasileiros, incluindo o anterior, foram incapazes de realizar.
Não creio que alguém possa subestimar o efeito positivo que isso
terá na imagem do Brasil. Trará
também a confiança do setor privado brasileiro, em que, como você diz, o ceticismo é grande -e
por bons motivos porque de fato
todas essas promessas já foram
ouvidas antes, e eles sabem o poder dos interesses organizados
(incluindo o deles próprios) trabalhando contra as reformas. Logo, como dizem em Chicago,
"show me".
As recompensas potenciais para
o sucesso das reformas são claras:
dará maior controle aos gastos
vinculados, maior liberdade de
gastos ao governo, permitirá uma
diminuição substancial da taxa de
juros e conterá os lucros advindos
de instrumentos especulativos. É
importante também reconhecer o
ambiente global em que isso está
acontecendo -há uma tendência
deflacionária nos países ricos e o
risco de guerra, conflitos civis e
terrorismo em partes importantes
da Ásia e do Oriente Médio. Nesse
cenário, o Brasil será um dos poucos países em desenvolvimento a
terem um perfil positivo e investidores, acima de tudo investidores
brasileiros, que serão encorajados
a colocarem seu dinheiro em setores promissores para tirar vantagens das oportunidades que surgirão com o crescimento da economia.
Há nesse momento grande
quantidade de capital brasileiro
em paraísos fiscais, mas sem grandes lucros; quando começarem a
retornar ao país, outros investidores os seguirão.
Folha - Os efeitos dessa reforma
não seriam sentidos de imediato.
Quanto tempo ainda o sr. crê que o
Brasil terá que continuar a manter
as atuais diretrizes macroeconômicas, seguindo o modelo em que se
enfiou na década de 90?
Maxwell - Eu não acho que o Brasil ainda esteja sob o mesmo modelo econômico dos 90 -o próprio FMI, o Banco Mundial e o Tesouro americano reconhecem isso. Não se fala mais em câmbio fixo, por exemplo, e há preocupação com os aspectos sociais e desenvolvimentistas das políticas
macroeconômica e fiscal -e acho
que há mais convergência aqui do
que possa parecer, e o Brasil pode
até se tornar o novo modelo que
eles todos procuram. Mas devo
deixar claro que não creio que
uma mudança radical seja possível ou desejável.
Folha - A eleição de Nestor Kirchner na Argentina pode, de alguma
maneira, influenciar na condução
da política interna no Brasil?
Maxwell - Espero que não. Não
vejo com bons olhos o futuro da
Argentina. Ela poderia se tornar
uma pedra amarrada ao pescoço
do Brasil. A Argentina permanece
quebrada, empobrecida e guiada
por frações de um establishment
político totalmente corrupto, incompetente e perigosamente fragmentado.
Folha - A Argentina parece confirmar uma "guinada à esquerda" na
América do Sul. Esse guinada pode
ir além do mero discurso? Há condições objetivas que permitam-na
acontecer de fato?
Maxwell - Há esquerdas e esquerdas na América Latina. Esquerdas antigas, não renovadas,
cegas de antiamericanismo. Há
também velhas esquerdas populistas, caudilhescas e militaristas a
la Chávez. Há ainda novas esquerdas pragmáticas, que reconhecem
os constrangimentos com que
têm que lidar, mas que buscam
usar os instrumentos que têm para tentar superar a vulnerabilidade externa e a desigualdade social.
O Brasil é sem dúvida líder da esquerda pragmática agora. Mas
não vejo uma tendência unificada
de esquerda [na região]; algumas
experiências parecem mais, por
vezes, respostas desesperadas ao
fracasso.
Folha - Como o sr. lê a estratégia
brasileira de tentar assegurar para
si a liderança da América do Sul?
Poderia influenciar e trazer ganhos
em negociações como Alca e OMC?
Maxwell - Uma liderança necessita de seguidores. Essa aspiração
tem sempre estado mais na mente
das autoridades em Brasília do
que na realidade. Muitos países
hispânicos da América do Sul, por
exemplo, optariam por negociar
diretamente com os EUA no caso
de qualquer conflito real sobre comércio se oferecida a chance de
um acordo bilateral. Será que
Chávez, por exemplo, cessaria de
exportar petróleo para os EUA?
Quanto à Europa, a idéia de que
eles possam abrir o setor agrícola
para o Brasil é uma piada.
Folha - A estratégia de política externa brasileira está no caminho errado? É pouco producente tentar
aprofundar as relações na América
do Sul, e dar menor ênfase à Alca?
Maxwell - O Brasil enfrenta graves dilemas no front internacional, e a área de relações exteriores
é onde há claramente mais confusão dentro do governo. Não vislumbro saídas fáceis. Será muito
difícil romper as barreiras protecionistas dos EUA e da Europa.
Não creio que o Mercosul seja
uma alternativa a longo prazo
-provavelmente acordos de livre
comércio sejam uma opção que
oferece mais flexibilidade que
uma união aduaneira em que os
dois principais parceiros são vulneráveis às idiossincrasias de investidores externos e nenhum dos
dois pode jogar o papel que, por
exemplo, a Alemanha Ocidental
representou na transferência de
recursos para ajudar os parceiros
mais pobres entre os anos 70 e 80.
Não há nada que possa deter múltiplos acordos de livre comércio,
por exemplo, como os casos do
Chile e do México já demonstraram. Ambos consideraram essa
opção como vantajosa. Nesse sentido é um erro pensar que a Alca é
um sistema fechado -não é. Mas
minha impressão é que se vier a
ocorrer uma confrontação entre o
Brasil e os EUA sobre isso, os americanos têm mais cartas na manga.
Um enfrentamento do tipo "pegar
ou largar" não é uma atitude perspicaz para o Brasil.
Folha - O que o país deveria fazer?
Maxwell - O Brasil deve negociar
simultaneamente com a Europa e
os EUA, como de fato está fazendo. Há no Brasil a idéia de que a
negociação simultânea possa "jogar um contra o outro" gerando
ganhos para o país -e talvez possa-, mas há muito ainda a ser dito sobre um acordo bilateral a sério e do mais alto nível entre os
EUA e o Brasil -um acordo que
defina as áreas de concordância e
conflito e não permita que elas sejam definidas nos níveis burocráticos inferiores. Se isso ocorresse,
as coisas andariam. Se não, as negociações terminarão apenas
num atoleiro de rancor e azedume. A agenda não deve ser meramente comercial, que deve ser
apenas parte do grupo de políticas
necessárias -e acho que Lula está
sendo bastante sábio ao ir para o
encontro do G8 em Evian, com
amplo espectro de propostas a
respeito da economia global e de
questões de justiça social.
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