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Professora de filosofia da USP afirma que país não vive crise social, mas, pela primeira vez, plenitude democrática
Democracia é conflito, não ordem, diz Chaui
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
O que está acontecendo no país,
segundo a professora de filosofia
da USP Marilena Chaui, não é
uma crise social, mas sim, pela
primeira vez na história, o pleno
funcionamento da democracia.
"É uma coisa espantosa e certamente deixa as pessoas desorientadas porque é uma experiência
inédita", afirma.
Contra a idéia "liberal" de que a
democracia é "o regime da lei e da
ordem", a filósofa diz que "a democracia é o único regime político no qual os conflitos são considerados o princípio mesmo do
seu funcionamento".
Numa entrevista que começou
motivada pelas questões da enquete da Folha sobre a suposta
crise social, Chaui tornou impossível a simples sequência de perguntas prevista.
Disse que considerava inviável
saber se o presidente Luiz Inácio
Lula da Silva tem perdido apoio
entre os intelectuais, já que os
professores universitários paulistanos analisariam o governo Lula
de forma diversa daquela de seus
pares no resto do país.
Para ela, "a intelectualidade tucana é mais forte e numerosa em
São Paulo" e termina por pautar a
imprensa e o debate, mesmo
quando se trata de reproduzir críticas de intelectuais petistas. Leia
a seguir trechos da entrevista.
Folha - Queríamos conversar com
a sra. sobre essa suposta situação
de crise social...
Marilena Chaui - Que crise social? Quem vê crise social é a Folha de S.Paulo.
Folha - A sra. acha que não cabe
falar em desordem social no país?
Chaui - O que existe é democracia em pleno funcionamento. É
uma coisa espantosa e certamente
deixa as pessoas desorientadas
porque é uma experiência inédita
no país. Mas é a mais profunda
experiência de democracia que
esse país já teve.
Folha - E quais são os sinais disso?
Chaui - O fato de que todas as categorias profissionais e todas as
classes sociais se manifestam livremente, a favor e contra as medidas governamentais.
Os grevistas não são desqualificados como caipiras, atrasados,
incompetentes. São levados a sério e se negocia com eles. Há uma
claríssima discussão sobre direitos. Tanto a questão de direitos
adquiridos e se estão ou não sendo feridos por propostas de reformas quanto a de direitos a serem
conquistados, como é o caso da
reforma agrária.
Em vez de falar em crise e em
desordem, que são os temas preferidos da classe dominante brasileira na sua tradição autoritária, é
hora de comemorarmos o fato de
que finalmente este país está conhecendo uma experiência democrática. Democracia não é, como querem os liberais, o regime
da lei e da ordem. Democracia é o
único regime político no qual os
conflitos são considerados o princípio mesmo do seu funcionamento.
Folha - A segunda pergunta seria
o que o governo Lula poderia fazer
quanto aos atuais conflitos para
melhorar a situação do país, mas se
eles são o princípio da democracia,
não faz sentido...
Chaui - ...esperar melhorar a situação. Ao contrário, seria destruí-la tentar fazer com que o conflito não possa se exprimir.
A tragédia da história política
brasileira tem sido o fato de que
toda vez que os conflitos procuram se exprimir legitimamente,
imediatamente eles recebem o
nome de crise. E a palavra crise
para a direita brasileira significa
perigo e desordem. É por isso que
a democracia nunca vai para frente. Espero que dessa vez vá.
Espero que o conflito possa se
realizar. Que o seu trabalho histórico possa se realizar.
Folha - Esse "trabalho" pode influenciar o rumo do governo?
Chaui - Mas é óbvio. Não estamos numa monarquia absolutista. Na democracia, graças ao trabalho do conflito, a sociedade diz
ao governo o que ela pensa, o que
quer e como quer que seja feito.
Folha - O modo como o MST ou os
sem-teto têm apresentado suas
reivindicações é legítimo?
Chaui - Mas eles sempre fizeram
assim. Em outras ocasiões, vimos
a resposta militarizada por parte
do governo ou a resposta pela violência armada por parte da oligarquia rural. Dessa vez, o novo é o
fato de que a resposta às reivindicações é: "São justas, não são caso
de polícia". Só que há um "timing" para atender a essas reivindicações em virtude de o governo
ter recebido uma herança que faz
com que tenha que agir com lentidão maior que a desejável.
Folha - E do lado dos ruralistas
que se armam? É caso de polícia?
Chaui -Aí é caso de polícia. Sabemos que eles dispõem de recursos
extraconstitucionais que eles
sempre usaram. Foi sempre apanágio e direito por parte dos ruralistas usar a violência como a forma de ação no campo.
Folha - Finalmente, a terceira
pergunta da enquete: entre os intelectuais, o governo Lula perdeu
apoio?
Chaui -Não sou capaz de dizer. A
posição dos intelectuais em outros Estados e cidades não corresponde ao que temos visto acontecer em São Paulo, em particular
na USP. Há diferenças regionais.
Os intelectuais de outros Estados
parecem lidar de forma diferente
com o governo Lula.
Folha - Por quê?
Chaui - Entre outros motivos, a
intelectualidade tucana é mais
forte e numerosa em São Paulo.
Ela, de um modo geral, pauta os
debates.
Folha - Mesmo que a imprensa
ouça intelectuais petistas insatisfeitos, a discussão está sendo pautada pela intelectualidade tucana?
Chaui - Sim. Não acho que a intelectualidade petista está discutindo a mesma coisa que os tucanos.
Mas a pauta é tucana. Quando os
primeiros petistas, como o [sociólogo] Chico de Oliveira e [o filósofo] Paulo Arantes, iniciaram as
críticas ao governo, as críticas foram pela esquerda. Mas foram encampadas pelo tucanato, que passou a fazer uma crítica pela direita
e passou a pautar os temas que valeriam a pena ser discutidos. É um
fenômeno paulistano de hegemonia do tucanato na esfera da crítica. Que se aproveita de um clima
jornalístico favorável.
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