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GUERRA NA AMAZÔNIA
Brasil faz campanha para anular registro de propriedade da marca cupuaçu concedido à empresa japonesa
O cupuaçu é nosso
PLÍNIO FRAGA
DA REPORTAGEM LOCAL
A faixa de 14 metros de comprimento estendida no Congresso
Nacional dizia: "O cupuaçu é nosso". Até chegar ali, há duas semanas, percorreu os 2.139 km que separam Brasília de Presidente Figueiredo (AM).
Foi nessa cidade do norte do
Amazonas que, em abril deste
ano, organizações não-governamentais iniciaram movimento
que acreditam encontrar paralelo
em importância à campanha do
"Petróleo é Nosso" -mobilização que completa 50 anos de seu
encerramento daqui a dois meses.
Cupuaçu é o nome -originado
do tupi- de uma fruta tropical
semelhante ao cacau. Pode pesar
mais de 1 kg e só é ocasionalmente
encontrada fora da Amazônia.
Não poderia ser, por suas origens, mais brasileira. Mas não é
assim vista pelas agências oficiais
de marcas e patentes do Japão,
dos Estados Unidos e da Europa.
ONGs (organizações não-governamentais) ligadas à preservação ambiental, apoiadas pelo Ministério das Relações Exteriores
brasileiro, contestam, desde 20 de
março, a concessão dos direitos
de comercialização da marca "cupuaçu" à empresa japonesa Asahi
Foods, sediada em Kyoto.
A Asahi Foods criou uma empresa, a Cupuacu International
[sem cedilha], que pediu também
o registro de patente para os métodos de produção industrial do
cupulate, o chocolate obtido a
partir da semente de cupuaçu.
O resultado da disputa em torno da propriedade da marca e dos
direitos da patente industrial só
deve sair entre dezembro deste
ano e setembro de 2004.
Na semana passada, circularam
boatos na Amazônia de que a
Asahi Foods havia desistido do
registro. Mas a empresa negou à
Folha ter aberto mão da disputa.
Surpresa na descoberta
A cessão dos direitos de propriedade da marca cupuaçu à empresa japonesa foi descoberta por
integrantes do Grupo de Trabalho
Amazônico (GTA), uma rede de
ONGs, ambientalistas, pequenos
agricultores e associações de extrativistas de produtos florestais.
Um grupo de produtores tentava exportar bombons e geléias de
cupuaçu para a Alemanha, em setembro de 2002, quando foi alertado pelos importadores de que
não podia usar o termo cupuaçu
nos rótulos, por se tratar de marca
registrada de empresa japonesa.
A partir daí, o GTA iniciou uma
busca nos escritórios de marcas e
patentes do Japão, dos Estados
Unidos e da Europa. Descobriu
pedidos envolvendo não só o cupuaçu como a andiroba e a copaíba -árvores de onde são extraídos produtos cosméticos, energéticos e medicinais-, o biribiri
-planta da qual os indígenas retiram sementes usadas como contraceptivo- e até mesmo da ayahuasca, chá alucinógeno usado
em rituais religiosos.
Analgésico do sapo
Na semana passada, o deputado
federal Henrique Afonso (PT-AC) foi à tribuna da Câmara dizer
que laboratórios europeus haviam pedido direito de patente sobre a produção de analgésicos
com base em demorfina e deltorfina, obtidos a partir da secreção
do sapo kambô, utilizada na medicina indígena amazônica.
"A campanha "O Cupuaçu é
Nosso" é simbólica e de longo prazo. Surgiu da necessidade de alertar sobre o que está acontecendo
na Amazônia. O cupuaçu é o caso
mais importante porque foi concedido o direito de marca a uma
empresa privada, mas é um
exemplo do que pode acontecer
com outros produtos", afirma o
webdesigner austríaco Michael
Schmidlehner, 38, presidente da
ONG Amazonlink.
Ele é um dos líderes da campanha "O Cupuaçu é Nosso", que
comanda protestos contra a Asahi
Foods principalmente por meio
do envio de correio eletrônico
(www.amazonlink.org.br).
Casado com uma brasileira,
Schmidlehner mora em Rio Branco (AC) desde 1995. Decidiu trocar a Áustria pelo Brasil depois de
férias em que percorreu o país de
moto, do Sul ao Norte, onde se fixou, interessado na Amazônia.
Schmidlehner diz acreditar que
dificilmente os escritórios de
marcas e patentes mantenham o
registro do cupuaçu nas mãos de
uma empresa depois de informados de que se trata de uma matéria-prima, sobre a qual não são
aceitos direitos de propriedade.
Cupulate
A disputa mais importante comercialmente no caso envolve a
produção de cupulate, o chocolate obtido a partir de suas sementes. A Asahi Foods entrou com
um pedido de patenteamento da
produção industrial desse tipo de
chocolate e de óleos extraídos da
semente da fruta.
Pelas leis de proteção à propriedade industrial, marca é um sinal
distintivo de um produto que pode ser registrado desde que não
haja outro com igual batismo.
Já a obtenção de direito de patente depende de três requisitos
básicos para a sua obtenção
-novidade, inventividade e aplicação industrial. Obtido o registro
de marca ou patente o detentor
adquire o direito de exclusividade
sobre eles, podendo cobrar de
quem quiser usá-los.
A presença de centenas de estrangeiros entre as inúmeras
ONGs integrantes do Grupo de
Trabalho Amazônico é um dos
argumentos usados pela Asahi
Foods para dizer que há um clima
de mistificação no debate.
"Estamos profundamente desapontados. A opinião pública brasileira parece inclinada em favor
da campanha que tem sido conduzida por ONGs européias",
afirmou à Folha Nagasawa Makoto, diretor da Asahi Foods e da
Cupuacu International.
"A maior parte do discurso deles é baseada em exageros e não
na verdade da filosofia de marcas
e patentes do sistema industrial.
Estão tentando fazer mais barulho do que compreender totalmente a situação", declarou.
Os representantes do GTA não
tratam o caso do cupuaçu como
uma forma de biopirataria. Chamam de "biogrilagem". A obtenção de um analgésico a partir de
um sapo da Amazônia estaria
mais próxima do que se chama de
biopirataria, desenvolvimento de
um produto a partir da chamada
sabedoria tradicional.
A "biogrilagem" seria tomar para uma empresa os direitos de comercialização de um nome ou
produto de conhecimento, em geral, de comunidades indígenas.
No caso do cupuaçu, os produtores brasileiros não querem os
direitos sobre a marca, mas poder
comercializar a fruta livremente,
sem ter de pagar por isso, o que teria de ocorrer se mantido o registro obtido pela Asahi Foods.
A produção nacional deve alcançar neste ano mais de 500 toneladas, sendo 10% delas exportadas para o Japão, um negócio que
envolve cerca de US$ 2 milhões.
No Congresso Nacional, os organizadores da campanha "O Cupuaçu é Nosso" conseguiram a
convocação de uma audiência pública conjunta das comissões da
Amazônia e do Meio Ambiente,
quando serão ouvidos a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha
e o diretor do Conselho de Gestão
do Patrimônio Genético, Eduardo
Velez, no dia 21 de agosto.
Em setembro, na véspera da
reunião da Organização Mundial
do Comércio, em Cancún, será
realizado um seminário especial
sobre biopirataria e lei de patentes
no qual os brasileiros vão expor
sua campanha.
Eles reivindicam direitos de
propriedade sobre a sabedoria
tradicional. Assim, comunidades
poderiam receber dinheiro de
quem comercializasse produtos
desenvolvidos a partir dos conhecimentos acumulados por elas.
A pregação do "Petróleo é Nosso" durou seis anos (entre 1947 e
1953), dividiu o país entre "nacionalistas" e "entreguistas" e resultou na criação da Petrobras. O
que pode sair da campanha do
cupuaçu? "Não podemos ficar
inertes diante da ineficácia da legislação atual sobre as distorções
geradas pelas práticas de registros
de marcas e patentes no mundo",
responde Michael Schmidlehner.
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