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NO PLANALTO
Réquiem do velho e bom militante petista
JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA
Não morreram apenas o
Partido dos Trabalhadores
e os derradeiros resquícios do discurso pseudosocialista. Morreu
com eles um personagem emblemático da cena nacional, o militante petista. Foi substituído por
um espécime prosaico, o "visitador". Recrutaram-se mais de
4.000 só na cidade de São Paulo.
Contam as sagradas escrituras
que foi fulminante a conversão do
santo que dá nome ao município
governado por Marta Suplicy. O
soldado Saulo, contumaz perseguidor de cristãos, cavalgava pela
estrada de Damasco quando, subitamente, teve os olhos varados
por uma luz fulgente. "Saulo, por
que me persegues", disse-lhe a voz
divina, vinda do céu. Extasiado,
Saulo tornou-se ali mesmo são
Paulo, arauto do cristianismo.
Dá-se algo semelhante com o
"visitador" do ex-PT. Embora
não traga na alma o dogmatismo
acrítico do velho militante, converte-se instantaneamente em
apóstolo do petismo. À falta de
uma voz caída das alturas, deixa-se sensibilizar pelos cifrões. Move-o a fé remunerada.
Esgota-se aqui a analogia herética tomada de empréstimo da
Bíblia. Em troca de boa paga, o
pregador petista difunde mensagem diferente daquela irradiada
por são Paulo. Operando à maneira do vendedor de cosméticos,
de porta em porta, o "visitador"
petista mercadeja o CEU de Marta Suplicy.
E quanto ao militante tradicional, que foi feito dele? Uma parte
se desiludiu. Outra leva envelheceu, criou barriga, constituiu família e foi brigar pelo leite das
crianças. Um terceiro grupo se
rendeu às prebendas de um Estado aparelhado. Infiltrado em ministérios, repartições e empresas
estatais, entrega até 20% do salário ao partido.
Adicionado ao dízimo recolhido de parlamentares do ex-PT, o
óbolo compulsório do neofuncionalismo reforça o caixa central do
partido em algo como R$ 15 milhões anuais. Um suplemento
providencial à cruzada contributiva personificada pelo companheiro-coletor Delúbio Soares, interlocutor voraz de uma plutocracia inebriada com a avenida de
oportunidades aberta pelo petismo no poder.
Tudo somado, o ex-PT virou
um portento financeiro. Empreende nacionalmente uma
abastada campanha. O valor do
recheio do cofre petista é segredo
que não se conta nem em confessionário. As estimativas mais pessimistas situam o borderô eleitoral da legenda de Lula na casa
dos R$ 80 milhões. As mais otimistas alçam o orçamento a valores que superam a extraordinária
marca de R$ 100 milhões. Em
qualquer hipótese, é coisa sem
precedentes.
O sumiço da militância petista
trouxe benefício adicional. O Brasil de Lula livrou-se daquela incômoda sensação de que o caldeirão
nacional estava em permanente
fervura. Antes, convivia-se com a
impressão de que o Palácio de Inverno estava prestes a ser invadido. Agora, a política da histeria,
em franco desuso, dá lugar a uma
pasmaceira inaudita.
Súbito, foram-se as faixas de
"Fora fulano de tal" e "Abaixo o
FMI". A despeito da sobrevivência do modelo liberal que costumava mobilizar o laboratório petista de convulsões, não há mais
passeatas. Minguaram as manifestações de rua. Desapareceram
os "dias nacionais de luta" da
CUT.
O projeto socialista e a mística
revolucionária já haviam sido arquivados há tempos. Mais recentemente, viraram pó também os
nobres propósitos moralizadores.
Descartou-se o desejo ardente de
revogar o passado alheio. Rendido com atraso à lógica internacional, o ex-PT repete a trajetória
da esquerda européia.
Para ingressar no clube do poder, o petismo renegou os lemas
marxistas que unificavam a militância. Exatamente como fez o
Partido Socialista francês, em
1991, puxando um movimento
que contagiaria do trabalhismo
inglês às esquerdas escandinavas
e ibéricas. Muito antes, o Partido
Social Democrata alemão renunciara, no congresso de Bad Godesberg, em 1959, aos princípios da
economia planificada.
Porém, diferentemente do que
se observou no velho continente,
produz-se no Brasil um nefasto
processo de indiferenciação política. Ao preservar a essência do
receituário liberal do tucanato, o
petismo reforçou a percepção de
que todos os partidos são iguais.
Ao difundir prematuramente os
desejos reeleitorais de Lula, o camarada José Dirceu conseguiu
piorar as coisas. Evocou a mesma
ladainha de perpetuação que, sob
FHC, era vocalizada por Sérgio
Motta. Aguçou no imaginário do
eleitor o sentimento de que são
mesmo, como se costuma dizer,
farinha do mesmo saco.
Ao servir-se nacionalmente dos
bons préstimos do marqueteiro
Duda Mendonça, o mesmo que
outrora ajudou a eleger Paulo
Maluf, o ex-PT adensa a atmosfera de indiferenciação. Sabe-se que
sob os figurinos Ives St. Laurent
de Marta Suplicy não se esconde
um Maluf. Mas em política, mais
do que em outras atividades, as
aparências envenenam a realidade.
A construção de uma democracia incipiente como a brasileira
depende da capacidade do eleitor
de distinguir diferenças. Algo que
vai se tornando cada vez mais difícil. O discurso pasteurizado da
propaganda eleitoral (nada) gratuita e a conversa mole dos "visitadores" de aluguel apenas tonificam a crença de que é tudo a mesma coisa.
De resto, o fausto da campanha
municipal do ex-PT antecipa o tilintar das arcas eleitorais da cruzada presidencial de 2006. E a experiência recente demonstra que
a abastança monetária é a ante-sala do escândalo político. O brasileiro não perde por esperar.
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