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JANIO DE FREITAS
Uma demonstração especial
De repente, foi como se todos os outros reféns, com uma exceção, evaporassem nas brumas da selva colombiana
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A CAMPANHA e os festejos pela libertação de Ingrid Betancourt,
mais do que justificados, compõem uma demonstração clara e didática do quanto estamos todos sujeitos às manipulações por intermédio dos chamados meios de comunicação, mesmo para boas causas e não
só para as de fins criminosos como,
em exemplos extremos, as mentiras
para o ataque ao Vietnã, a ocupação
do Iraque e a guerra nazista.
O número de reféns retidos pelas
Farc varia, conforme quem o cita, de
200 a 800. Basta-nos citar centenas,
porque a barbaridade não se altera.
De repente, foi como se todos esses,
com uma exceção, evaporassem nas
brumas da selva. O mundo foi levado
por uma campanha competente a
abolir de suas emoções centenas de
seres e concentrar-se, entre comovido e revoltado, na suposição de uma
só pessoa merecedora de tudo para
resgatá-la do seu pequeno inferno.
Ao governo francês, participante
mais notório do episódio, não faltam
motivos para ser aplaudido, por sua
"ação decisiva" dita pela própria Ingrid Betancourt, nem outros para lamentá-lo. Mesmo que não se considerem possíveis utilizações políticas
e propagandísticas por parte do presidente Sarkozy, como antes por Jacques Chirac, seu motivo para abstrair
do "decisivo" esforço centenas de seres humanos é quase torpe: o casamento remoto com um francês, com
decorrentes direitos de cidadania
francesa que o divórcio não retirou.
Não estava em questão o ser humano,
mas um estatuto jurídico francês
aplicado, por acaso, a Ingrid Betancourt, como poderia sê-lo a outro refém que, então, seria o beneficiário
da "ação decisiva".
Se, nas centenas de reféns, não
constam outras duplas nacionalidades francesas, azar o deles. Ou melhor, eles nem existem nesse capítulo
senão em referências tão escassas e
sucintas quanto possível: "os outros
reféns", "os demais reféns". A rigor,
Sarkozy e o governo francês não foram originais. Seguiram a conduta
mais comum nos governos, entre militares e na diplomacia. Os Estados
Unidos só mostraram interesse nos
três mercenários resgatados com Ingrid Betancourt. Mas, com ou sem
Bush, os modos norte-americanos
são bem conhecidos, ao passo que temos o vício histórico de ver a França
com outros olhos, apesar da guerra
da Indochina, dos horrores da guerra
na Argélia, da guerra do Suez, contemporâneas de muitos de nós.
A manipulação sobre a manipulação. A família de Ingrid Betancourt
cumpriu com grau exemplar o seu
papel de batalhar por todos os meios
para trazê-la de volta. O que daí resultou foi um clima ficcional que jogou
com as emoções públicas, transformando-as em força de pressão que
contribuiu muito para a exceção Ingrid Betancourt, com a conseqüente
irrelevância em que foram postas as
centenas de demais cativos. Ingrid
Betancourt tinha todo o alfabeto das
hepatites, úlcera rompida, todos os
piores efeitos da leishmaniose, anemia, inação muscular, corria risco de
morte, logo teria apenas semanas de
vida, um pouco mais e, se não fosse
libertada de imediato, não resistiria
a mais do que dias. "Estou muito
bem", disse ela sobre seu estado, ao
chegar a Bogotá. "Estou muito
bem", repetiu em Paris, "e daqui a
uns dias vou fazer alguns exames,
mas só os de rotina".
Sejam 200, 500, 800, os reféns relegados são também pais, mães, filhos. Não haverá entre eles quem
possa ter até maior grandeza do que
Ingrid Betancourt? Ou seriam todos, como seres humanos, merecedores do descaso com que foram e
estão sendo tratados, temas só de referências obrigatórias e furtivas? O
propalado esmagamento das Farc é
posto em dúvida por sua capacidade
de manter centenas de reféns, o que
implica muitas dificuldades, e controlar parte imensa do território colombiano. Nessas circunstâncias, as centenas de cativos que não contam
com governos e com manipulações
da opinião pública merecem, ao menos, uma palavra de solidariedade.
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