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NO PLANALTO
Lula, o troco e o bom ladrão de Vieira
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Deu-se há dez dias. Lula falava à Rádio Record. A alturas tantas, perguntaram-lhe sobre a suposta mesada de R$ 40
mil que empresas de ônibus vinham pingando no embornal de
agentes da prefeitura petista de
Santo André.
"Eu fico até brincando", respondeu, "que isso aí é um troco no
processo de corrupção no Brasil,
em que se fala de milhões e milhões (...)".
Em tempo de são João, brincar
com querosene à beira da fogueira não é coisa que o bom senso recomenda. De todo modo, é bom
que Lula tenha circunscrito o comentário ao campo da galhofa.
Do contrário, poder-se-ia presumir que tivesse desejado dizer algo assim: ainda que seja verdadeira, a acusação é uma honra
para o PT, que, ao roubar, rouba
pouco.
Lula fazia pilhéria, não há dúvida. Fosse Adão um petista militante, decerto ainda estaríamos
no Éden, eis a tese escondida
atrás do chiste. Que crime, afinal,
cometeu o primeiro homem?
Roubou uma maçã. Uma reles
maçã. A mãe, por assim dizer, de
todos os trocos.
O gracejo de Lula ganha ossatura antropológica quando vista
sob a ótica de um clássico: o "Sermão do Bom Ladrão", do padre
Antônio Vieira. Deus pôs Adão
no paraíso, anotou Vieira, com
poder sobre todos os viventes, como senhor absoluto de todas as
coisas criadas. Exceção feita a
uma árvore. Eis que, com a cumplicidade da mulher, Adão provou do único fruto que não lhe
pertencia.
"E quem foi que pagou o furto?", pergunta Vieira. Ninguém
menos que Deus, materializado
na pele de Jesus. Condenado à
cruz, pregado entre ladrões, ofereceu um exemplo aos príncipes.
Um sinal de que são, também
eles, responsáveis pelo roubo praticado por seus ministros.
Ao sobrepor a imagem do "troco" à dos "milhões", Lula como
que contrapôs a Santo André petista à Brasília tucana. Sem querer, evocou outro trecho do "Sermão do Bom Ladrão".
Conta Vieira que, navegando
em poderosa armada, estava Alexandre Magno a conquistar a Índia quando trouxeram à sua presença um pirata dado a roubar os
pescadores. Alexandre repreendeu-o. Destemido, o pirata replicou: "Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em
uma armada, sois imperador?".
Citando Lucius Annaeus Seneca, um austero filósofo e dramaturgo de origem espanhola, que
serviu em Roma como conselheiro de Nero, Vieira lapida o raciocínio: se o rei da Macedônia, ou
qualquer outro, fizer o que faz o
ladrão e o pirata, todos -rei, ladrão e pirata- merecem o mesmo nome.
Assim, o furto de uma bolsa, a
extorsão de empresas municipais
e a pilhagem de autarquias federais são irrupções de um mesmo
fenômeno. O tamanho do furto
importa pouco. De troco em troco
também se chega ao milhão. E
quem furta e se desonra no pouco
mais facilmente o fará no muito,
já dizia o Cristo.
A bordo de sua armada brasiliense, que inclui navios avariados com rombos do tamanho de
uma Sudam, o grão-tucanato diverte-se com o contorcionismo vocabular a que se vê submetido o
PT. Tudo graças às incursões da
barca de Santo André pelo encapelado mar da suspeita. Riem-se
tanto os tucanos que se esquecem
de alinhavar explicações para a
súbita conversão da Polícia Federal em birô eleitoral.
O PT sempre se acreditou empenhado numa guerra do bem contra o mal. Segundo o padrão petista de exigência ética, quando se
começava a duvidar de alguém,
era sinal de que já não havia a
menor dúvida. O partido notabilizou-se por cobrar dos adversários um comportamento de mulher de César. Soa esquisito que
queira para si tratamento diverso. Não terá.
Imagine-se os pulos que daria o
PT se o irmão de um prefeito tucano comparecesse ao Ministério
Público para denunciar esquema
municipal de achaques. Avalie-se
o que diria José Dirceu se o sujeito
revelasse que parte da grana, entregue a José Aníbal, houvesse engraxado o caixa de campanha de
José Serra. Faça-se uma idéia dos
vitupérios que pingariam dos lábios de Lula se Serra ousasse qualificar o roubo como "um troco".
Volte-se, por oportuno, a Vieira.
Diz o sábio padre que são companheiros dos ladrões os que os dissimulam; são companheiros dos
ladrões os que os consentem; são
companheiros dos ladrões os que
lhes dão postos e poderes; são
companheiros dos ladrões os que
os defendem; são companheiros
dos ladrões os que hão de acompanhá-los ao inferno.
O PT merece melhor sorte. Que
os indícios colecionados em Santo
André virem pó no curso da apuração. Ou o que Lula diz "brincando" pode acabar inspirando a
criação de uma inusitada escala
ética. A escala São Dimas, em homenagem ao bom ladrão do
Evangelho.
Quem furtasse com parcimônia
na esfera pública -de R$ 40 mil
em R$ 40 mil- estaria livre da
sanha petista. Isso em nível municipal. Haveria tetos diferenciados
para o bom ladrão estadual e para o federal. E Duda Mendonça
teria de ajustar o lema da campanha petista. Em vez de "por um
Brasil decente, Lula presidente",
algo como "entre o troco e o milhão, vote no mais brincalhão".
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