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BALANÇO
Perry Anderson reconhece avanços no controle da inflação e na área social, mas vê mais danos que benefícios no período
FHC deixou saldo negativo, diz historiador
DA REDAÇÃO
O historiador britânico Perry Anderson, 64, esperava
mais do governo Fernando Henrique Cardoso, sociólogo de renome internacional e com uma biografia marcada pela oposição ao regime militar. Mas, apesar de alguns avanços inegáveis -como o controle da inflação e
progressos na área social-, o legado da era FHC é essencialmente negativo: "estagnação crescente, salários
reais em queda, desemprego em nível nunca antes visto
e uma dívida estarrecedora. O regime foi condenado em
seus próprios termos". A razão desse fiasco é o neoliberalismo que, barrando qualquer controle sobre a mobilidade do capital, produziu aqui resultados mais devastadores do que os trazidos a outros países do continente.
Em certo sentido, Fernando Henrique Cardoso foi
uma vítima, não da teoria da dependência por ele teorizada, mas da dependência real da economia brasileira às
nações do Primeiro Mundo. Ao deixar o país inteiramente à mercê dos movimentos imprevisíveis do capital
financeiro mundial, o governo ficou exposto a todos os
infortúnios que acometeram o mercado mundial. No
plano diplomático, atrelou o Brasil aos EUA.
A entrevista a seguir é atípica. A Folha enviou ao autor, por e-mail, um conjunto de perguntas sobre a
atual conjuntura política e econômica do Brasil, acompanhado de questionamentos sobre suas obras, tanto
as mais antigas como sobre seu livro mais recente,
"Afinidades Seletivas". Apesar de reconhecer a relevância dos problemas levantados, Anderson respondeu que, neste momento, a tarefa crucial era a análise
do governo FHC e do resultado da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva. Ele descartou assim inteiramente
uma parte das questões propostas pela Folha e estendeu, por conta própria, suas análises sobre a situação
do Brasil, intercalando perguntas que ele considerava
importantes para esclarecer suas opiniões. Nesse sentido, o texto final acabou sendo basicamente um diálogo do autor consigo mesmo, mais do que uma entrevista. Leia os principais trechos de seu depoimento:
Pergunta - Em 1994, o senhor disse que Fernando Henrique provavelmente seria o melhor presidente que o Brasil já teve, mas que teríamos que esperar para avaliar esse elogio. Hoje, ao final de seu
mandato, o senhor ainda concorda
com a primeira parte de sua proposição? E o que diria da segunda?
Perry Anderson - Não há dúvida
alguma de que muitos brasileiros
-principalmente, mas não exclusivamente, os membros da
classe média- acham que Fernando Henrique foi o governante
mais esclarecido que o país teve
até hoje. Eles podem apontar uma
série de conquistas que, mesmo
que com frequência sejam exageradas nas apologias oficiais, foram reais e palpáveis. A hiperinflação foi derrotada já no início do
governo FHC, o que sem dúvida
alguma beneficiou as camadas
mais pobres da população.
O analfabetismo diminuiu, a
mortalidade infantil foi reduzida
e houve um certo grau de redistribuição da terra. Houve avanços
na área social e administrativa. O
aparelho de Estado passou por
uma modernização genuína, sob
alguns aspectos, tornando-se menos opaco e mais eficiente. Os níveis de corrupção, embora continuem altos, caíram. As informações estatísticas são mais confiáveis, os controles orçamentários
estão mais rígidos, o clientelismo
regional foi reduzido. Esses são
processos que enfraqueceram as
oligarquias do Nordeste, o que
talvez tenha sido a mais importante mudança de longo prazo
conquistada ao longo destes anos.
Pergunta - Quer dizer que, para o
senhor, o resultado global do mandato FHC é positivo?
Anderson - Seria um erro menosprezar esses avanços. Mas eles
são muito modestos quando
comparados à escala dos danos
provocados pelas políticas macroeconômicas do governo. A característica que define o governo
FHC tem sido o neoliberalismo
"light", do tipo que predominou
nos anos 1990, quando as doutrinas da Terceira Via distanciaram-se ostensivamente das versões
mais rígidas de neoliberalismo introduzidas por Reagan e Thatcher
nos anos 80, ao mesmo tempo em
que, na prática, levaram adiante
-na realidade, muitas vezes
acentuaram- o programa original, acompanhado apenas de
concessões sociais secundárias e
de um discurso mais flexível.
A dinâmica fundamental do
neoliberalismo se ergue sobre
dois princípios: a desregulamentação dos mercados e a privatização dos serviços. Convencido de
que o Brasil não pode financiar o
crescimento a partir da poupança
doméstica e de que suas estatais
fomentavam a ineficiência e a corrupção, Fernando Henrique Cardoso leiloou a maior parte do setor estatal e abriu a economia
completamente, apostando na
entrada de um fluxo maciço de
capital externo para modernizar o
país. Após oito anos, os resultados
estão aí, evidentes: estagnação
crescente, salários reais em queda,
desemprego em nível nunca antes
visto e uma dívida estarrecedora.
O regime foi condenado em seus
próprios termos. A conquista da
qual o governo mais se orgulha, a
estabilização monetária, está em
ruínas: o real está valendo um
quarto do que valia no início do
Plano Real, as taxas de juros são as
mais altas do mundo e o país hoje
se vê cara a cara com a possibilidade de moratória. A disparidade
de renda não apenas continua a
ser virtualmente a pior do mundo, como agora a dependência está incomparavelmente maior do
que era -em todos os sentidos
negativos- quando FHC, num
passado já distante, certa vez propôs uma teoria crítica dela. É um
legado desastroso.
Pergunta - Mas não é certo que os
responsáveis pela maioria dessas
dificuldades foram fatos que estavam fora do controle do governo?
Será que é correto atribuir a culpa
de tudo a Fernando Henrique?
Anderson - A lógica de um modelo neoliberal na periferia do capitalismo mundial coloca qualquer país que a adota à mercê de
movimentos imprevisíveis nos
mercados financeiros no centro,
de modo que os infortúnios que
acometeram FHC foram em
grande medida a crônica de um
fiasco anunciado. Mas este também foi um regime hesitante e incompetente. A taxa de câmbio era
insustentável desde o início, tendo sido sobrevalorizada para fins
demagógicos, e não se pensou
nem mesmo no grau módico dos
controles de capital, controles estes que protegeram a economia
chilena dos piores efeitos que o
Brasil viria a sofrer. De modo
mais geral, é claro, a idéia toda de
que a chave para atrair capital externo seria a desregulamentação e
a privatização extremas era extraordinariamente ingênua e provinciana. Nos mesmos anos durante os quais FHC estava conduzindo o Brasil para o triste beco
sem saída em que o país se encontra agora, a China estava atraindo
investimentos externos em escala
colossal, deixando no chinelo o
capital volátil que chegava ao Brasil, com controles de capital rígidos e uma moeda não conversível, além de apresentar de longe o
mais alto índice mundial de crescimento do PIB. A China hoje tem
muitos problemas, sem falar em
desigualdades e injustiças. Mas o
contraste entre desenvolvimento
vigoroso e dependência aleijada
não poderia ser mais gritante.
Pergunta - O sr. dá a entender
que as políticas de FHC foram estúpidas, mas o sr. considerava FHC
um político muito inteligente.
Anderson - As razões pelas quais
FHC se manteve num caminho
evidentemente calamitoso por
tanto templo, quando a lógica já
ficara clara na primeira crise cambial, em 1995, precisam ser descobertas por futuros historiadores.
Uma explicação pode residir no
pacto político com a velha ordem
que o levou ao poder. Hoje, seus
admiradores no exterior -basta
olhar qualquer edição de ""The
Economist"- não hesitam em
descrever o governo FHC como
um regime de centro-direita. Segundo essa interpretação, ele se
tornou prisioneiro de alianças
conservadoras das quais não conseguiu libertar-se em nenhum
momento. Mas essa explicação
não me convence por inteiro, entre outras coisas porque as oligarquias tradicionais brasileiras nunca foram doutrinalmente inflexíveis -seus instintos são inteiramente fisiológicos- e, em vários
momentos, seriam prejudicadas
com doses excessivas de desregulamentação. É uma área na qual
podem se fazer diversas especulações, mas meu palpite é que uma
resposta melhor se encerra na relação entre FHC e Malan, e, através deste, com o FMI e os EUA.
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