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Anderson vê na ênfase atribuída pela imprensa à biografia de Lula o sintoma de uma cultura "sentimental e cínica"
"O paz e amor é um vocabulário de derrota"
Vanderlei Almeida/France Presse
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TERRA EM TRANSE Simpatizante do PT festeja vitória de Luiz Inácio Lula da Silva em São Bernardo, acenando para o presidente eleito no instante em que ele aparecia na janela do seu prédio |
Pergunta - Explique melhor.
Anderson - Pense na relação entre Menem e Cavallo. É claro que a
dupla brasileira é muito diferente.
Cavallo possui um lado demoníaco, também em sua ousadia e
energia, que está inteiramente ausente em Malan, discretamente
medíocre. Menem tinha motivos
para temer Cavallo como rival potencial. FHC, pelo contrário, talvez preferisse que Malan fosse seu
sucessor. Mas o que havia em comum nos dois casos é a dependência do governante num técnico, e isso na área decisiva do governo contemporâneo. Menem,
ignorante completo em matéria
de economia, permitiu que Cavallo instalasse a loucura que foi a
paridade entre peso e dólar.
Fernando Henrique, infinitamente mais bem preparado, mesmo assim continuou sendo sociólogo por formação, e sua própria
consciência das disciplinas intelectuais o levou a mostrar deferência a um economista profissional. O Real foi obra de Malan e da
equipe dele -e FHC deve tudo a
ele. Essa dívida moral fez com que
lhe fosse difícil descartar Malan
juntamente com Gustavo Franco
no momento em que, politicamente, deveria tê-lo feito para
proteger seus próprios interesses.
Mas havia um fator adicional: o
fato de que Malan, que tinha intimidade com o FMI, representava
uma garantia da confiança americana. Enquanto permanecesse no
cargo, FHC poderia ter certeza de
receber um tratamento excepcional por parte do FMI e do Tesouro
americano. Para Fernando Henrique, os Estados Unidos sempre
foram o ponto central de referência externa, em todos os sentidos.
Pergunta - Em todos os sentidos?
Em termos intelectuais, a cultura
de FHC é muito mais européia.
Anderson - Não, eu diria que
ocorreu uma mudança significativa durante os anos de exílio e da
abertura. Foram fundações americanas, afinal, que possibilitaram
o trabalho científico do Cebrap
quando Fernando Henrique voltou ao Brasil, e, quando ele ingressou na arena política, não fez segredo do fato de que achava que o
Brasil precisava de algo equivalente ao Partido Democrata americano, que ele enxergava no
MDB. Quando ele se tornou presidente, o poder dos EUA no
mundo tinha aumentado tremendamente com a vitória americana
na Guerra Fria, criando uma hegemonia global de um tipo nunca
antes visto. Ideologicamente,
FHC já tinha se adaptado a isso
bem antes de chegar ao Planalto.
O resultado, se deixarmos de lado os atritos esporádicos em torno de tarifas ou patentes, foi um
alinhamento mais ou menos
completo com Washington em
todas as mais importantes questões internacionais. Durante uma
década, o Brasil praticamente não
teve política externa própria. É
verdade que isso não chegou a ser
novidade: o regime militar, que tinha alguma idéia de geopolítica,
constitui uma exceção nesse sentido. Mas FHC chegou ao poder
prometendo que o Brasil exerceria um papel no mundo que seria
proporcional às dimensões de sua
economia recém-encontrada. No
exterior, porém, tudo o que provavelmente será lembrado disso
serão os encontros presunçosos
da ""Terceira Via", em Nova York,
Florença e Berlim, nas quais Clinton e Blair se reuniram com companheiros e subalternos, suscitando reações de ridículo cada vez
maior, mesmo entre a imprensa
que os enxergava com bons olhos.
O lado de bobagem cômica dessas
reuniões, de palavras tolas e fúteis
jogadas ao vento, fez mais para
desacreditar FHC no exterior do
que ele talvez tenha imaginado.
Pergunta - Apesar disso, o sr. não
acha que FHC contribuiu para consolidar a democracia no pais?
Anderson - Mas o que há de tão
especial nisso? Os impérios tendem a conferir aos povos que os
desfrutaram uma perspectiva nitidamente introvertida, provinciana -destino do qual os brasileiros não foram capazes de escapar, não mais do que o foram os
britânicos ou americanos. A preservação da democracia não
constitui mérito especial de FHC,
pois ela nunca esteve seriamente
ameaçada desde que os generais
deixaram o poder, e, longe de
constituir um feito notável do
Brasil, é uma banalidade regional.
Todas as outras sociedades latino-americanas que passaram por tiranias militares nos anos 60 e 70
fizeram o mesmo (Argentina,
Chile, Uruguai) sob governantes
insossos, conservadores ou mesmo corruptos e autocráticos: Aylwin, Frei, Lagos, Sanguinetti, Batlle; mesmo Menem entregou o
poder a De La Rua da mesma forma rotineira que FHC o entregará
a Lula. Não há nada demais nisso.
Pergunta - Mas a qualidade da
democracia brasileira não teria
melhorado sob o governo FHC?
Anderson - Pelo contrário, eu diria que ela decaiu. Quando as pessoas falam do efeito ""civilizador"
do governo FHC, estão, na realidade, fazendo referência a sua capacidade de reprimir o potencial
conflituoso da democracia brasileira, ao estabelecer os parâmetros de um consenso no qual todas discordância séria é desqualificada de antemão, vista como
anacrônica e deslocada. É a versão
local do pensamento único. Naturalmente, as trocas de opinião
dentro desse curral são feitas com
cortesia. Mas, se olharmos para as
estruturas institucionais do poder, o que vemos? Antes de tornar-se presidente, FHC falava da
necessidade urgente de reforma
política para tornar o sistema partidário mais coerente e mais regido por princípios, e isso como
condição primeira para melhorar
a vida democrática no Brasil. O
que foi feito nesse sentido? Nada.
Na prática, ele preferiu manter a
promiscuidade amorfa existente,
já que ela se coadunava tão bem
com suas próprias habilidades de
mestre exímio das manobras no
Congresso. A suposta ""reforma"
que ele instituiu quase à força foi o
exato oposto: reeleição presidencial. Politicamente falando, foi o
pior ato isolado de sua gestão,
aquele que terá os efeitos mais
prolongados. Esse ato o situa ao
lado de Fujimori e de Menem, assim como de tantos outros governantes de ego inflado, que degradaram tanto as tradições constitucionais quanto as perspectivas
democráticas de seus países.
Pergunta - Por que o sr. tem uma
opinião tão negativa da reeleição?
Anderson - A América Latina
sempre sofreu os efeitos do presidencialismo excessivamente poderoso -a pior importação feita
dos Estados Unidos, mais ainda
porque agravada pela ausência de
um sistema que refreia a atuação
do presidente-, berço do qual
nasce todo tipo de demagogia e
autocracia. Mas, pelo menos os
oligarcas liberais do século 19 e
seus sucessores no século 20 tinham o bom senso de manter o limite do mandato único. No Brasil, mesmo a ditadura militar dos
anos 60 e 70 não mexeu com essa
regra, tendo dado mostras de autodisciplina coletiva suficiente para passar o bastão de um presidente a outro a cada quatro anos.
Não havia razões fortes para que
FHC fizesse questão de se reeleger, exceto a vaidade. Malan ou
Serra poderiam perfeitamente ter
levado seu regime adiante em
1998, momento no qual eles teriam sido eleitos sem dificuldade.
Ao forçar essa mudança fundamental por razões triviais, Fernando Henrique desferiu um golpe duplo contra a democracia
brasileira. Em primeiro lugar, ao
reforçar os poderes do Executivo
e a personalização da política, no
sentido mais deteriorado do termo, que o cerca. Em segundo, pela desonestidade com que ele orquestrou a campanha para seu
continuísmo, dizendo à nação, repetidas vezes, que não tinha nada
a ver com o desejo espontâneo de
autorizar um segundo mandato
que teria nascido no Congresso.
Mentir de maneira tão aberta e
desavergonhada assim é um ato
de menosprezo. Mostrou claramente até demais a realidade cínica que se escondia por trás da fachada da democracia brasileira
""aperfeiçoada". Para ter uma visão da decadência política que essa iniciativa desencadeou, basta
olhar para os anúncios com que
os candidatos à Presidência inundaram o país neste outono.
Pergunta - Como assim?
Anderson - Se FHC tivesse deixado o poder em 1998, seu desempenho teria parecido muito melhor
do que parece em 2002. Ao aferrar-se ao poder, FHC garantiu
que será recordado principalmente pela derrocada econômica
que provocou. Ele deixará o poder em estilo mexicano -como
Lopez Portillo ou Carlos Salinas,
capaz apenas, e por pouco, de
adiar até depois de estar fora do
poder a prestação de contas pelo
que fez, mas com poucas chances
de poder proteger sua reputação
contra o que está por vir. Diferentemente de Portillo ou Salinas,
FHC nunca foi corrupto. Mas -e
nisso também ele difere dos
dois- ele não proporcionou a
seu país nem sequer um período
breve de boom econômico.
Pergunta - O sr. considera que o
governo FHC fracassou?
Anderson - Não, ainda é cedo para dizer isso. Paradoxalmente, os
próprios erros de administração
econômica de seu governo podem acabar gerando um êxito político de longo prazo. Pois o legado da dívida que FHC deixou vai
colocar um ônus tão debilitante
sobre seu sucessor que Cardoso
terá boas razões para esperar, como ele diz, que sua política continue depois dele, no novo governo.
É claro que essa não é a única restrição que ele legou: a hegemonia
ideológica do tipo de neoliberalismo que ele passou a personificar
permanece, se não intato, largamente dominante no Brasil de hoje, juntamente com a personalização do poder que ele intensificou.
Do mesmo modo que Thatcher
pode enxergar Tony Blair como
sua realização mais durável, tanto
assim que ela o afirma, FHC também poderá congratular-se pelo
fato de que ele tornou a ordem
neoliberal irreversível no Brasil
por um bom tempo ainda por vir.
Pergunta - O sr. acha que Lula pode tornar-se semelhante a Blair?
Anderson - Já temos muitos
exemplos de políticos ou partidos
vencendo eleições em plataformas que se opõem frontalmente
ao neoliberalismo mas que, uma
vez chegados ao poder, passam a
implementar políticas neoliberais, com frequência ainda mais
drasticamente do que tinham feito aqueles que o denunciavam.
Na América Latina, Carlos Andrés Perez foi o primeiro a seguir
esse caminho, tendo feito críticas
eloquentes à dívida externa e à
austeridade em sua campanha,
para depois impor ao país um pacote tão selvagem que detonou o
""caracazo" de 1989, numa sociedade que, na época, era substancialmente mais rica do que é o
Brasil hoje. No mesmo ano, Fujimori derrotou Mário Vargas Llosa no Peru, denunciando o neoliberalismo deste com uma violência que supera de longe qualquer
discurso do PT de hoje, para, em
seguida, tornar-se arquiteto de
uma versão particularmente corrupta e cruel do neoliberalismo. A
trajetória de Menem, na Argentina, foi essencialmente a mesma.
Pergunta - Mas nenhum desses
dirigentes se situava à esquerda.
Não podem ser comparados a Lula.
Anderson - Na Europa, já vimos
o mesmo ciclo sendo repetido
tanto pela esquerda quanto pela
direita. A França é o caso mais
eloquente em pauta. Chirac chegou ao poder em 1995 denunciando o ""pensamento único" dos
anos Mitterrand -foi ele quem
virtualmente cunhou o termo.
Uma vez eleito, seu governo imediatamente tentou impor reformas neoliberais clássicas, o que
desencadeou as grandes greves de
1996 e o fez perder as eleições de
1998, que foram vencidas por Jospin prometendo fazer o contrário.
Em quatro anos, Jospin já tinha
privatizado mais do que todos os
governos anteriores juntos. O
Partido Socialista, por sua vez, foi
rejeitado nas urnas este ano.
Pergunta - O sr. acha que o PT é
como o Partido Socialista francês?
Anderson - Não. A eleição de Lula para ser o próximo presidente
do Brasil marca uma virada política muito mais profunda, e, potencialmente, abre espaço para mais
esperança do que qualquer mudança de governante na França.
Mas, se quisermos traçar uma estimativa realista das chances de
uma descontinuidade real nas políticas econômicas e sociais no
Brasil, teremos que pesar cuidadosamente as condições de uma
ruptura significativa com o passado. Existem três razões principais
para imaginar que o país possa escapar de um ciclo de repetição.
Em primeiro lugar, a própria figura de Lula. Pode haver uma tendência a sobrestimar a importância de suas origens. A cultura brasileira é sentimental, além de cínica, e neste momento a mídia está
se fartando de divulgar informações biográficas sobre o presidente eleito. O exemplo de Lech Walesa deveria bastar como aviso
contra os excessos nesse departamento. Isto posto, não deixa de
ser verdade que Lula personifica
uma experiência de vida popular
e um registro da luta social e política de baixo para cima inigualado
por qualquer outro governante
no mundo atual. Além disso, por
trás dele está o único partido de
massas novo a ter sido criado a
partir do movimento sindical desde a Segunda Guerra -um partido que, em termos de números,
influência e coesão não tem igual
na América Latina. Existe uma
distância entre Lula e o PT -Lula
recebeu o dobro dos votos dados
ao PT- que corre o risco de ser
acentuada pela Presidência reforçada. Mas a combinação de Lula e
PT ainda é muito forte. Por fim,
existe um clima de expectativa
popular que nenhum presidente
recente desfrutou no início de seu
mandato. A esperança de que o
país possa deixar para trás a miséria dos últimos anos não vai desaparecer da noite para o dia.
Pergunta - O sr. está otimista
quanto ao governo Lula?
Anderson - Contra esses pontos
a favor, precisamos equilibrar as
restrições objetivos formadas pela
situação na qual o presidente e o
partido agora se encontram. Em
primeiríssimo lugar, está a paisagem econômica devastada. Já antes de assumir o poder, o PT se
comprometeu a respeitar os termos severos ditados pelo FMI,
que vão não apenas excluir qualquer aumento significativo nos
gastos sociais como, provavelmente, ditar uma contração forte,
visando impedir que a confiança
dos credores externos e as taxas
de juros subam ainda mais. Se é
virtualmente tabu dizê-lo no Brasil, fora do país a imprensa financeira não faz segredo quanto ao
fato de ter concluído que uma
moratória brasileira é inevitável,
mais cedo ou mais tarde. O mais
provável é que a crise econômica
se aprofunde. Ao mesmo tempo,
a mobilização social permanece
baixa, em níveis muito inferiores
aos dos anos 80 -um dos efeitos
dos anos FHC, enfraquecendo as
energias coletivas sempre necessárias para fazer frente a tais crises. Há também o peso da tradição cultural que se fará sentir sobre os agentes de qualquer renovação. Muito mais ainda do que a
Itália, que lançou o conceito para
o mundo, o Brasil é por excelência
o país do ""transformismo", a capacidade que possui a ordem estabelecida de abraçar e inverter as
forças transformadoras, até que
fica impossível distingui-las daquilo que se propunham a combater. É o lado sombrio da incomparável cordialidade brasileira. O
"paz e amor" é, por antecipação,
um vocabulário de ingestão e derrota. Uma causa pode sobreviver
a um slogan, mas, sem slogans
melhores do que este, as pressões
objetivas não vão demorar a esmagar os desejos subjetivos.
Pergunta - Como o sr. avalia os
programas do PT?
Perry Anderson - O PT, como
oposição, vem dando mostras de
razoável criatividade. Os orçamentos participativos de Porto
Alegre são uma invenção largamente admirada em todo o mundo. Os economistas do PT foram
os primeiros a chamar atenção
para a lógica do neoliberalismo de
Malan e a prever suas consequências fatais. De modo geral, porém,
nem o PT nem o presidente eleito
têm qualquer alternativa pronta
para opor à ortodoxia reinante,
como deixa clara a imediata adesão deles às diretivas do FMI. Historicamente, é claro, as inovações
políticas reais na América Latina
não seguiram esquemas preconcebidos. Da grande crise que abalou o continente em 1929 saiu um
conjunto de respostas pragmáticas e intuitivas -em essência, diferentes formas de populismo baseado na substituição de importações: o getulismo, o peronismo, o
MNR na Bolívia e assim por diante, que, em sua época, foram altamente criativas e eficazes. Em lugar de orientar os atores de antemão, as doutrinas do Cepal foram
cristalizadas ""post facto". Hoje a
América Latina mais uma vez enfrenta uma crise de proporções
continentais. Por que o Brasil não
poderiam encontrar uma saída
do impasse de maneira similar
-com soluções pragmáticas, feitas sob medida para cada caso?
A diferença está no grau incomparavelmente maior de integração das economias, sociedades e
culturas latino-americanas com a
ordem mundial do capital, comandada pelo Norte. Por esse
motivo, os pré-requisitos programáticos para uma fuga da camisa
de força atual parecem ser muito
maiores. Mas se as economias
centrais entrassem numa espiral
descendente, então, enquanto o
império ficasse cuidando de suas
próprias terras original, é provável que aumentassem as chances
de a periferia encontrar soluções
baseadas na criatividade.
Tradução de Clara Allain
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