|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Entrevista da 2ª/Frei Betto
Lula não tinha que saber sobre investigação de Vavá
Religioso e amigo de Lula defende o irmão do presidente e elogia a PF, mas diz que iniciativas do governo são insuficientes para alcançar a "mudança" prometida
LEANDRO BEGUOCI
DA REPORTAGEM LOCAL
FREI BETTO , 62, afirma que Lula não deveria saber com antecedência sobre as investigações que apontam seu irmão, Vavá, como lobista. Mas defende tanto o irmão do presidente -"é bom, mas ingênuo"- quanto a Polícia Federal. Segundo ele, a polícia faz algo inédito ao não diferenciar ricos e pobres nas suas operações.
Nesta entrevista à Folha, ele ainda afirma que a polícia caminha para ser uma espécie de FBI e fala sobre o lançamento de seu livro "Calendário do Poder", um diário no qual faz um balanço crítico do programa Fome Zero.
Assessor especial da presidência entre 2003 e 2004 e
amigo de Lula desde os tempos
de sindicalismo no ABC, Frei
Betto diz que o governo comete
um erro fundamental ao não
transformar algumas de suas
políticas em medidas de Estado, dando a elas um caráter permanente, estrutural.
Na entrevista, o religioso
também fala sobre seu novo livro, "Calendário do Poder", no
qual afirma que o próprio governo enterrou o programa Fome Zero, e reclama da falta de
verbas às pastas sociais.
FOLHA - Na campanha de 2002,
quando o PT falava de combate à
corrupção, a Polícia Federal aparecia
com pouco destaque. Por que ela virou a principal bandeira do governo
nessa área?
FREI BETTO - Lula deu carta
branca ao Márcio Thomaz Bastos [ex-ministro da Justiça],
um homem acima de qualquer
suspeita, isento e corajoso. Depois, houve a nomeação do
Paulo Lacerda para diretor da
Polícia Federal, que tem uma
carreira brilhante, isenta, com
coragem de atuar, inclusive na
depuração da própria PF. Nunca houve tanta investigação interna, eles estão cortando na
carne e no osso.
No Rio de Janeiro, o Ministério Público começou a trabalhar com a PF e a exercer a função de fiscalização da polícia.
Isso é algo bom e pode ser estendido a outros Estados. Se
também conseguirmos acabar
com os tribunais especiais para
a Polícia Militar, então vamos
ter uma polícia decente.
FOLHA - A "guerra interna" pela
sucessão da PF não mostra os limites
desse processo?
FREI BETTO - A atitude mais sábia seria o ministro Tarso Genro manter o Paulo Lacerda. Ele
conseguiu várias coisas, não só
depurar mas também qualificar a polícia. Na verdade, é uma
guerra de poder, como existe
em qualquer instituição.
No caso da polícia, a questão
se torna mais complexa à medida que a polícia tem de ser isenta. Acho que a figura da pedra
angular é o Paulo Lacerda.
FOLHA - Mas isso cria um problema, à medida que a PF se orienta
não por regras, mas por uma pessoa.
FREI BETTO - Tem de institucionalizar esses controles, os passos estão sendo dados. A PF foi
positivamente anabolizada no
governo Lula. Está se sentindo
com boa auto-estima, com reconhecimento não só do governo mas também da opinião pública. Há vontade de pegar aquilo que no Brasil sempre foi
impune e imune, que são os criminosos de colarinho branco.
FOLHA - Isso é suficiente?
FREI BETTO - Se amanhã vem outro governo e faz refluir essa
ação da PF, esse governo ficará
sob suspeita da opinião pública.
Há uma nova cultura sendo
criada, de que não há intocáveis
na sociedade brasileira. Não
importa qual o nível social do
criminoso. É claro, precisamos
ter critérios, não podemos cair
em uma caça às bruxas, isso seria extremamente perigoso.
Por isso é importante não ideologizar nem partidarizar a atuação de qualquer polícia.
A PF está se qualificando
muito do ponto de vista tecnológico e do preparo dos agentes.
Eles estão ficando com a cara
do FBI [escritório de investigação dos EUA]. A PF está virando uma referência mundial.
FOLHA - A empolgação do sr. com a
PF é a de alguém que ainda se sente
parte do governo?
FREI BETTO - A minha história é a
de alguém que sempre demonstrou indignação com a
impunidade. Não sou empolgado. Vejo na PF hoje o primeiro
exemplo de uma atuação qualificada que não faz distinção de
classe nem de pessoa. Isso tem
de ser exemplo para todo o aparelho policial brasileiro.
FOLHA - O governo Lula tem oferecido bons exemplos?
FREI BETTO - Não gosto de individualizar, porque posso cometer
injustiças. Uma coisa é a suspeita e outra é a prova. Há uma
série de políticos que fazem
parte da coalização do governo
que não me agradam e a quem
não deixaria na mão um sorvete esperando por uma criança.
O que fico indignado é que
vem político propor foro especial para quem já foi político.
Isso é absurdo, uma aberração.
Na minha concepção, quem
não deveria ter nenhum foro
especial é o político. Nenhum
foro especial e pena em dobro.
FOLHA - Segundo o ministro da
Justiça, Lula soube antes da operação que vasculhou a casa do irmão
dele. Isso é correto?
FREI BETTO - Nenhum de nós está acima da possibilidade de ser
investigado. Não tem que avisar ninguém. O Lula não tinha
de saber, não tem de saber. Só
têm de saber as pessoas que são
responsáveis pela investigação.
FOLHA - Pessoas próximas ao presidente se envolveram em dossiês
contra adversários e, agora, um amigo é acusado de ser dono de bingo.
O irmão do presidente é acusado de
de ser lobista. O sr. conhece Lula faz
tempo. Era possível imaginar que isso aconteceria?
FREI BETTO - Foi uma grande
surpresa. Quanto ao Vavá, acho
que é inocente. Ele tem bom
coração, para ele todo mundo é
bom, às vezes é ingênuo até demais. Quanto aos outros, foi
surpresa, mas devo dizer que
nunca fui próximo a essa turma. Não quero fazer prejulgamento, vamos esperar. Continuo aguardando que o PT cumpra a promessa de investigar e,
se preciso, punir os envolvidos
em todos os escândalos. Mas,
até agora, não aconteceu nada.
FOLHA - Qual a principal característica desse governo?
FREI BETTO - O governo Lula fez
uma grande reforma na pintura
e na disposição da casa, mas
não mexeu na estrutura da casa. A palavra mais forte do discurso de posse do primeiro
mandato foi mudança. E as mudanças não ocorreram. Há iniciativas positivas na área social,
no combate à corrupção, a Marina Silva no meio ambiente.
Agora, vindo o outro governo, infelizmente a estrutura da
casa permanecerá a mesma.
Nada garante que essas iniciativas passem a ser políticas de
Estado. Hoje, elas são políticas
de governo. Não tem reforma
agrária, não tem reforma previdenciária que realmente onere
os mais ricos.
FOLHA - Chávez tem mexido nas
"estruturas da casa". É um modelo?
FREI BETTO - O modelo do Chávez não é uma alternativa para
a gente. Não dá para mirar em
ninguém lá fora e falar "esse é o
exemplo". Não é isso. Nos 16
anos que vão se completar com
o fim do mandato do Lula, a população brasileira votou em alguém de esquerda.
Primeiro votou no Fernando
Henrique, que tinha imagem de
esquerda. Depois votou no Lula. Há um desejo de mudança
na população, no eleitorado. A
população vota em candidatos
progressistas, é um fenômeno
latino-americano. Não é só brasileiro. É um chega para lá nas
velhas oligarquias.
Votei no Lula, votaria hoje de
novo, é claro, mas as iniciativas
são insuficientes para mexer na
estrutura, na institucionalidade brasileira. Se vem um outro
governo, um governo do DEM,
o antigo PFL, tudo volta para
trás porque as estruturas não
foram mexidas.
O Brasil precisa de cinco reformas que têm de ser profundas: política, previdenciária,
tributária, agrária e a reforma
da educação, que considero
fundamental. Dou parabéns ao
Fernando Haddad [ministro da
Educação] pelo trabalho que
está fazendo, espero que os R$
8 bilhões de que ele precisa para esse PAC da Educação sejam
liberados, porque no Brasil
também tem isso: o dinheiro é
aprovado, mas o ministério da
Fazenda não solta.
FOLHA - O sr. se sente frustrado pelo tempo que passou no governo?
FREI BETTO - A vida inteira, não
fiz outra coisa que não querer
mudar. Já não creio que vou
participar da colheita, mas faço
questão de morrer semente.
Houve um tempo em que achei
que meu tempo pessoal se confundiria com o tempo histórico.
Não vou dizer que as coisas
andaram para trás. Têm melhorado. Depende também de
toda uma conjuntura mundial.
Há maior insatisfação com esse
processo de "globocolonização". A questão do ambiente
criou um nó porque atinge indistintamente todas as classes
sociais e todos os países.
Quem sabe o meio ambiente,
para surpresa da velha esquerda, não será uma ferramenta de
mudanças radicais no planeta?
O grande problema no Brasil
é que a nossa democracia é meramente virtual, porque a sociedade fica vendo de baixo a
ilha da fantasia sem ter mecanismos de interação com ela.
FOLHA - Essa era a pasta que o sr. e
o Oded Grajew tinham no começo
do governo Lula?
FREI BETTO - Era a pasta de mobilização social. No meu livro
"Calendário do Poder", descrevo todo o processo de ascensão
e queda dessa mobilização. De
como o governo criou um gabinete de mobilização, mas não
forneceu os recursos. É a primeira vez que um governo
criou algo do tipo. Mas não ofereceu os recursos, ficou difícil.
O Fome Zero foi engolido pelo Bolsa Família. Durante todo
o primeiro mandato, foi considerado a principal política. Mas
o próprio governo que criou
uma política social que virou
grife, o que é fato inédito na história política deste país, tratou
de enterrar o Fome Zero.
Tratou de enterrar para fazer
uma política focalizada, de dependência dos beneficiários ao
poder público. Até hoje o Bolsa
Família não tem porta de saída.
O governo inteiro sabe qual é,
mas não tem coragem: é a reforma agrária, a única maneira
de 11 milhões de famílias passarem a produzir a própria renda
e ficarem independentes,
emancipadas do poder público.
Você não pode fazer política
social para manter as pessoas
sob uma esmola permanente.
Nem por isso considero o Bolsa
Família negativo, devo dizer isso. O problema é que não pode
se perenizar.
FOLHA - E o que aconteceu com o
programa do PT? O Lula se "emancipou" do PT?
FREI BETTO - O PT virou sujeito
oculto ou correia de transmissão, quando deveria ser justamente a voz da sociedade junto
ao governo, é papel do partido,
e não ser a voz do governo junto
à sociedade. O lulismo superou
o petismo.
Texto Anterior: Comandante da PM era líder de máfia, diz PF Próximo Texto: Diário do frade: "Calendário do Poder" chega hoje às livrarias brasileiras Índice
|