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ENTREVISTA DA 2ª
PAULO BROSSARD
Vivemos uma fase policialesca; abusos estão sendo tolerados
Ex-ministro da Justiça diz que exposição de suspeitos fere presunção da inocência e que disputa entre STF e PF deu início a crise inédita
Lucas Uebel/Folha Imagem
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O ex-ministro do STF e do TSE Paulo Brossard de Souza Pinto, em sua casa, em Porto Alegre
EX-MINISTRO do STF (Supremo Tribunal
Federal), ex-presidente do TSE (Tribunal
Superior Eleitoral) e ex-ministro da Justiça (governo Sarney), o jurista gaúcho Paulo Brossard de Souza Pinto, 83, afirma que a exposição
de suspeitos em operações da Polícia Federal é "abuso" e fere o princípio da presunção da inocência. O ex-ministro sustenta que algemas só devam ser usadas
em suspeitos com possibilidade real de fuga ou de resistência. Fora disso, é "agressão gratuita". "Está havendo uma tolerância com o abuso", critica ele.
GRACILIANO ROCHA
DA AGÊNCIA FOLHA, EM PORTO ALEGRE
Segundo Brossard, o uso disseminado de grampos telefônicos em investigações indica um
resquício de autoritarismo,
"que destruiu o conceito de legalidade". Para ele, os juízes erram ao permitir que a quebra
de sigilo seja regra. "O uso do
poder é um convite ao excesso."
Embora tenha evitado comentar detalhes da polêmica
envolvendo a prisão e a liberação do banqueiro Daniel Dantas, Brossard afirma que a disputa entre instâncias do Judiciário abriu uma crise inédita e
de conseqüências imprevisíveis para o Poder.
FOLHA - O sr. é um crítico da chamada "espetacularização" das
ações da PF. O que há de errado?
PAULO BROSSARD - Há alguns fatos que estão acontecendo que
são inequivocamente graves e
também inéditos. De tudo que
vem acontecendo, uma das coisas mais importantes que foram ditas pelo presidente do
STF [Gilmar Mendes] é que o
país está atravessando uma fase policialesca. A expressão,
embora forte, é verdadeira. Pelo menos é verossímil. A interferência policial, sendo legítima, tudo bem, porque a polícia
existe é para isso. Quando existe uma infração que se apresenta com a natureza penal, aí é
obrigação, não é favor. O que
me chama a atenção, ao mesmo
tempo, é que está havendo uma
tolerância com o abuso.
FOLHA - Que tipo de abuso pela PF?
BROSSARD - Se eu, amanhã,
exercendo uma autoridade legal, me deparasse com uma situação em que o meu dever é
prender alguém, eu não hesitaria, mas prenderia com a finalidade de chegar ao resultado
mais útil com o menor dano.
Uma coisa é prender uma pessoa condenada com uma pena a
cumprir, onde não há uma necessidade de discrição. Agora,
quando se trata de suposição de
um crime, a conduta há de ser
diferente, há de se levar em
conta o que a Constituição estabeleceu, há de se levar em
conta o patrimônio da humanidade. O que estou notando agora é que está se perdendo o
apreço por essas garantias.
FOLHA - A prisão provisória não é
um instrumento adequado para garantir que suspeitos, por exemplo,
não destruam provas?
BROSSARD - A prisão provisória
é legítima, desde que haja a observância daquelas regras que
não são de agora. Para quê algemas? Haverá casos em que será
necessário. Há casos em que há
verdadeiros artistas em se evadir, neste caso a prudência recomenda as algemas. Mas há
casos aí de pessoas em idade
avançada, que não têm condições de correr. Algemar uma
pessoa dessas é agressão gratuita. E para quê? Só para humilhar. Isso é estúpido e brutal.
Fotografar, filmar e publicar é
para achincalhar uma pessoa
que pode ser autora de grandes
responsabilidades ou não.
Agora, num critério utilitário, o que é que isso ajuda? A
Constituição garante ao preso,
o preso condenado, que seja
preservado na sua integridade
física e moral. Então imagine
aquele que está sendo preso
porque está sendo investigado,
porque há uma dúvida. Isso é
um índice de falta de critério,
quem parte daí não tem limites.
FOLHA - Quem está sendo tolerante com o abuso?
BROSSARD - É difícil dizer, são
todos e não é ninguém. A sociedade se compõe de mil parcelas
e não existe uma expressão
adequada. Isso me impressiona
vivamente. Por maiores que sejam os indícios, a pessoa que
não é condenada deve ser considerada inocente. A presunção
de inocência é uma norma de
validade universal, salvo naturalmente naqueles países que
ainda vegetam em tiranias. Estamos vivendo aqui um período
de investigação judicial. Hoje
não se faz uma investigação policial sem recorrer a [quebra
de] sigilo. Isso não é normal.
Haverá casos que será justificável, é por isso que se tem que requerer a um juiz e o juiz pode
conceder ou não. Em geral,
concede-se. Agora, isso não pode ser regra, porque é perigoso.
FOLHA - Mas os juízes aprovam
quebras de sigilos depois que lhes
são apresentados indícios.
BROSSARD - Os juízes também
erram, os tribunais também erram, porque não são formados
nem de santos nem de sábios.
Estabelecer [a quebra do sigilo]
numa mera investigação pode
ser até útil, mas é preciso haver
determinados limites. Há um
velho princípio segundo o qual
o uso do poder é um convite ao
excesso. Uma pessoa bem intencionada que está fazendo
uma investigação e encontra
tropeços aqui e ali é tentada a
transcender este óbice. É perigoso, sobretudo quando se dá
secretamente. Vai acontecendo
sem que ninguém saiba, salvo
quem pratica ou quem sofre.
Sabe-se como começa e não
se sabe como termina, até porque pode estar em curso uma
investigação comprometida.
FOLHA - Comprometida politicamente, o sr. quer dizer?
BROSSARD - Eu não tenho elementos. No tempo em que fui
ministro da Justiça, não tive
atritos com a Polícia Federal.
Eu não posso dizer que esteja
havendo isso, mas, no caso do
R$ 1,7 milhão para a compra do
dossiê contra o [então candidato a governador José] Serra [em
2006, quando duas pessoas ligadas ao PT foram presas tentando comprar supostas denúncias contra tucanos], onde
parou aquele dinheiro? Eu pergunto porque não sei. A polícia
procedeu com correção naquele caso ou não? Alguém respondeu pela compra de um instrumento de crime contra um cidadão que era candidato a governador? Alguém prestou
contas disso? Ninguém. Isso
não é correto e não fica bem à
polícia, seja de que nível for.
FOLHA - A decisão do ministro Gilmar Mendes de soltar Daniel Dantas
pela segunda vez e a forte reação
das entidades que reúnem magistrados e procuradores em favor do
juiz Fausto De Sanctis instalou uma
crise no Judiciário?
BROSSARD - Eu não vou falar sobre qualquer coisa que esteja
sub judice. Não falo sobre isso
até porque já fui do tribunal. Eu
acho graça porque "crise" é o
vocábulo mais usado na língua
portuguesa. Mas aí [atrito entre
STF e instâncias inferiores] é
crise mesmo. Crise é vida, o que
está em crise está vivo -também aí, nisso que estamos vendo nos jornais. Eu estou com
mais de 80 anos e não me lembro de ter visto isso, de ter lido
isso em tempo algum.
FOLHA - O ministro Gilmar Mendes
considerou que o juiz Sanctis se insurgiu contra o STF. Isso não fere o
princípio da independência do juiz?
BROSSARD - Não posso comentar, é mérito. Faço uma generalização: em princípio, o juiz é
independente, talvez nem todos saibam o que isso representa para ele e para a sociedade.
FOLHA - O sr. é favorável a que o
juiz Sanctis responda ao Conselho
Nacional de Justiça? Qual papel o
CNJ deve desempenhar nessa crise?
BROSSARD - Repito que não falo
sobre o que está sub judice. Eu
já não estou no tribunal, mas é
uma tarefa muito difícil a do
Conselho Nacional de Justiça.
Tem que usar poder com critério, mas acho que tem de haver
alguém que tenha uma autoridade [sobre juízes]. O conselho
tem essa finalidade.
Quando estava no Senado, isso foi apresentado em uma daquelas reformas, combati e votei contra. Quando entrei no STF, mudei de opinião. Quantos juízes há no Brasil? O juiz
deve ter todas as virtudes humanas e sobre-humanas, mas
nem todos têm porque é a fragilidade da argila humana. É preciso que haja alguém que possa
fazer alguma coisa na medida
que possa fazer. Na ausência de
solução melhor, o conselho foi
um aperfeiçoamento.
FOLHA - Que desdobramentos essa
disputa entre instâncias pode ter?
BROSSARD - Ninguém sabe, mas
temo que não sejam bons.
FOLHA - De alguma maneira, as
turbulências no Judiciário e a própria crítica do STF à ação da PF podem ter uma repercussão mais profunda, como no conceito de separação de Poderes no Brasil?
BROSSARD - No conceito de separação dos Poderes, não. Talvez o período autoritário tenha
deixado seqüelas que nós não
nos damos conta. De todos os
males do autoritarismo, nenhum é superior à destruição
do conceito de legalidade.
Cumprir a lei se tornou quase
uma coisa inimaginável e isso
não se apaga de uma hora para
outra. Uma coisa que também
foi desaparecendo -em todas
as entidades, em todas as Casas,
em todos os Poderes- foram as
referências não escritas.
No mundo parlamentar, no
mundo partidário, por exemplo, as Casas Legislativas tinham cardeais. Tinham a mesma investidura dos demais, mas a palavra deles era melhor
acolhida, todo mundo sabia que
não iriam dizer uma coisa que
não fosse o bem da instituição.
Essas referências não existem
mais. Isso é visível em todos os
setores. Faltam líderes.
FOLHA - Desde que o sr. deixou o
Supremo, em 1994, o tribunal vem
passando por mudanças. No julgamento das células-tronco, por
exemplo, a corte ouviu pela primeira vez muitas entidades da sociedade civil. Para onde vai o STF?
BROSSARD - Realmente não havia precedente a esse respeito,
mas naquele julgamento havia
duas posições inconciliáveis.
Foi um julgamento de alta categoria, das duas posições, histórico. Também é a primeira vez
que um assunto desta natureza
chega ao tribunal. É a necessidade que cria o hábito.
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