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GOVERNO E IMPRENSA
Wanderley Reis diz que setores do PT podem ter laivos autoritários, mas que algum controle é positivo
Mídia exagera contra conselho, diz intelectual
MARTA SALOMON
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
O cientista político Fábio Wanderley Reis, 66, já animou um encontro de empresários com o então presidente Fernando Henrique Cardoso três anos atrás por
escrever que Luiz Inácio Lula da
Silva, caso eleito, poderia não terminar seu mandato, tão grandes
as turbulências.
Surpreendido com o desempenho de um ano e meio de governo
Lula, o doutor por Harvard
(EUA) e professor emérito da
UFMG (Universidade Federal de
Minas Gerais) vê agora exagero
nas reações às propostas de controlar a imprensa e a produção
cultural do país, desde que o controle se limite a conter eventuais
abusos dos jornais e a garantir
qualidade aos produtos culturais
financiados com verba pública.
"Não há como escapar de um
esforço de construção institucional complexo", afirma.
Folha - O sr. está entre os que
vêem inspiração autoritária nas recentes propostas do governo?
Fábio Wanderley Reis - Eu acho
que há um pouco de exagero na
reação. Não descarto a possibilidade de que pela cabeça desta ou
daquela liderança petista mais
apegada à inspiração ideológica
inicial do partido, o socialismo
etc., haja lá seus laivos autoritários. Mas há matizes muito importantes no assunto. O ponto
sensível da coisa tem a ver com até
que ponto a liberdade de imprensa é cerceada. Obviamente existe
algum perigo quanto a isso. O valor que representa uma imprensa
livre, independente, afirmativa,
aguerrida e combativa obviamente é algo da maior importância,
como parte de um arsenal de garantias institucionais da democracia. Mas existe a possibilidade
de a imprensa também de repente
atropelar direitos civis.
Folha - Na sua opinião, a imprensa livre não seria um valor absoluto, como disse o ministro Luiz Gushiken (Secretaria de Comunicação
e Gestão Estratégica)?
Reis - Não, estou querendo dizer
que existem justificativas para a
busca de algum tipo de controle,
algum tipo de regulação da imprensa. Basta pensar no que aconteceu no caso Alceni Guerra (ex-ministro da Saúde do governo
Collor, acusado de corrupção) ou
da Escola Base (cujos donos, em
94, foram alvo de falsa acusação
de abusar sexualmente dos alunos). São casos de erros dramáticos. E não há uma ressonância
correspondente na correção, é natural que seja assim.
Folha - A Justiça não dá conta de
lidar com erros como esses?
Reis - Acho que fica muito claro
que não basta o recurso à Justiça
contra eventuais abusos ou erros
da imprensa. Ora, se falamos em
controlar até o Judiciário, por que
não tratar de que haja algum tipo
de controle também da imprensa?
É possível fazer paralelo com a
autonomia da universidade. A
gente tem uma briga perene pela
autonomia da universidade, para
assegurar a chamada liberdade de
cátedra, que o Estado não interfira no que é ensinado. Mas não significa que o Estado deva estar fora
do controle de qualidade.
Folha - No caso da criação da Ancinav (Agência Nacional de Cinema
e Audiovisual), com supostos poderes sobre o conteúdo da produção
cultural do país, o sr. também encontra justificativa para a mão
mais forte do Estado?
Reis - Isso aí certamente é menos
justificado do que no caso da
preocupação com eventuais erros
da imprensa e suas conseqüências. Na melhor das hipóteses, eu
conseguiria imaginar como algo
positivo do ponto de vista doutrinário, filosófico etc., que houvesse
algum controle de qualidade no
caso de haver financiamento público. O Estado põe dinheiro público, sei lá, para financiar um filme ou o que quer que seja, é natural que haja algum exame, algum
acompanhamento, alguma garantia de que você tenha produção de boa qualidade. É algo muito diferente disso e perigoso a tentativa de orientar quanto ao conteúdo e há um pouco disso no
projeto, uma certa preocupação
nacionalista, de conteúdo social,
algo dificilmente defensável.
Folha - Há uma mesma lógica para as duas propostas e outras igualmente recentes, como aquela que
proíbe a divulgação do conteúdo
de grampos telefônicos?
Reis - Quanto aos grampos, a
preocupação de que não haja divulgação precoce de investigações
vai na mesma direção do que eu
dizia a respeito dos eventuais erros da imprensa. Eu acho que a
denúncia da tentativa de mordaça
envolve um certo exagero porque
aí sim haveria um perigo. Os direitos civis estão sendo afetados,
sem a menor dúvida, quando precipitadamente, este ou aquele
membro do Ministério Público
sai divulgando indícios.
Em geral, juntando as iniciativas, a agência, o conselho, a única
maneira de ver uma intenção comum seria naquela direção de
que eu falei no início. A idéia de
que você teria num governo petista pessoas imbuídas de uma ótica
autoritária, de inspiração socialista stalinista, buscando o exercício
de alguma coisa que acabaria sendo totalitária. Mas é difícil pretender que isso seja o caso da agência,
tendo em vista o conjunto de pessoas que estão envolvidas.
Folha - Pessoas, no caso, é o ministro Gilberto Gil?
Reis - Eu acho difícil atribuir ao
Gil, por exemplo, esse tipo de motivação. Eu definitivamente não
quero excluir a possibilidade, inclusive isso é um fato, existe esse
tipo de mentalidade em muita
gente ligada ao PT. A gente tem
experiência de ver certas práticas
com relação à educação. Houve
denúncias de totalitarismo. Provas de seleção de professores por
múltipla escolha em que a resposta certa era uma resposta percebida como ideologicamente certa
pelos autores do teste. Coisas desse tipo, algo inaceitável. Pode haver um pouco dessa motivação
nas iniciativas, mas é bom atentar
para os matizes e não dá para jogar tudo no mesmo saco.
A coisa acaba podendo ser resumida em algo que pegue a essência da coisa. No geral, você teria
necessidade para garantir a democracia, os direitos civis etc, não
há como escapar de um esforço
de construção institucional complexo. A idéia dos freios e contrapesos, em que você cria entidades
diversas, contrapõe um poder ao
outro etc etc e cria uma séria de
instâncias em que umas controlam as outras.
Folha - Entrariam aí tanto a agência como o conselho?
Reis - Claro, como parte desse
jogo institucional complexo.
Folha - E pode servir para impor
censura?
Reis - Pois é, existe risco por aí.
Mas a maneira de neutralizar isso
seria ver a coisa debatida de maneira apropriada, eventualmente
o conselho ter representação diversificada. O que dá para dizer
num nível genérico é que não se
pode abdicar de um esforço de
construção institucional complexo. A coisa é a complicada e a resposta tem de ser necessariamente
complicada também.
Folha - Não haveria contradição
entre a política econômica liberal
do PT e a ação intervencionista no
domínio cultural e da opinião?
Reis - Acho que na verdade isso
acaba sendo parte de uma certa
síndrome a que um governo petista estaria necessariamente exposto nessas circunstâncias. Por
um lado, ele evidentemente é suspeito aos olhos da direita, dos setores mais conservadores da sociedade, inclinados a ver totalitarismo em muita coisa, porque afinal de contas o PT é o herdeiro
das suspeitas que havia anteriormente com relação ao risco de revolução. Por outro lado, cobra-se
do PT, no espectro da esquerda, a
fidelidade a um certo ideário da
esquerda. Então o PT acaba preso
por ter cão e por não ter cão.
Folha - Três anos depois de pensar que Lula poderia não terminar
o mandato caso eleito, o sr. se surpreendeu com o desempenho de
um ano e meio de gestão petista?
Reis - Eu te confesso que sou
surpreendido positivamente.
Porque eu tinha muito temor em
relação a que um desses lados dessas suspeitas em relação ao PT, o
lado mais à direita, prevalecesse, e
a gente tivesse muito mais turbulência. Nesse sentido, a moderação que o PT mostrou em aplacar
as suspeitas dos meios financeiros
está sendo bem-sucedida. Bem ou
mal há alguma perspectiva de o
Brasil ter crescimento estável.
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