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FOLCLORE POLÍTICO /FERNANDO MORAIS
D. Lucas, ACM e o pároco baiano
Ninguém poderá dizer que tenham sido calorosos os laços
que ligaram Antonio Carlos Magalhães ao recém falecido cardeal
Lucas Moreira Neves. Jamais se
viu ou ouviu algo indicasse um
arranhão público na relação entre eles, mas os dois jamais se bicaram. A esgrima praticada pelos
dois, no entanto, em nada lembrava a proverbial truculência
das nossas pelejas políticas. Eram
estocadas certeiras, mas discretas,
florentinas. Embora fossem ambos conservadores, a explicação
talvez fosse simples: a Bahia era
pequena demais para dois egos
tão grandes.
Dom Lucas clamava por políticas públicas "mais humanas" do
governo? Entrava em atrito com
os candomblés, impedindo filhas-de-santo de lavarem as sacrossantas escadarias do Bonfim?
Pois Magalhães respondia à sua
moda: todo dia 16 de setembro,
por exemplo, quando os baianos
se enfileiravam na porta do Palácio Episcopal para beijar o anel
cardinalício do aniversariante
ilustre, ACM cabulava o compromisso protocolar e aparecia em
Santo Amaro da Purificação, festejando outra entidade, que faz
anos na mesma data: dona Canô,
a mãe de Caetano Veloso e Maria
Betânia.
O choque frontal entre os dois
pareceu inevitável em meados de
1996, quando dom Lucas decidiu
aposentar o pároco da igreja de
Nossa Senhora da Vitória, padre
Gaspar Sadock, que acabara de
completar 80 anos. Ocorre que
monsenhor Sadock não era apenas um mero vigário de paróquia,
mas parte integrante da paisagem baiana. Negro vigoroso, orador inflamado, capelão honorário do Esporte Clube Vitória, nome de rua em Salvador, o religioso era identificado não apenas
por suas peregrinas virtudes cristãs, mas também por ser um apaixonado carlista como são chamados na Bahia os seguidores de
ACM. O chefe da Igreja parecia
decidido a trombar com o chefe
da política.
Às voltas com as eleições municipais, nas quais pretendia retomar da oposição a prefeitura de
Salvador, o senador sabia que
perder monsenhor Sadock em
plena batalha seria uma derrota
política. Coincidia o pleito municipal, porém, com outra eleição,
que se desenrolava a milhares de
quilômetros da Bahia: a disputa,
na Academia Brasileira de Letras,
pela cadeira número 12, vaga que
era pretendida por ninguém menos que dom Lucas Moreira Neves.
Foram necessários poucos dias
para chegar a dom Lucas a preciosa informação: ancorado em
seu prestígio político, Antonio
Carlos Magalhães tinha condições de influenciar o voto de pelo
menos 20 acadêmicos da ABL. Se
tocasse em um só fio de cabelo da
gaforinha branca de monsenhor
Sadock, o cardeal podia sepultar
para sempre o sonho de converter-se em um imortal.
Se forem indagados a respeito
desse episódio, é possível que tanto o ex-senador como monsenhor
Sadock neguem de mãos juntas
que ele tenha acontecido. Mas a
verdade é que dom Lucas se elegeu para a ABL, Antonio Carlos
Magalhães ganhou as eleições de
Salvador no primeiro turno e
monsenhor Sadock, quase nonagenário, continua rezando missas
em Nossa Senhora da Vitória.
FERNANDO MORAIS, 56, escritor e jornalista, escreve aos domingos nesta seção
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