|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ENTREVISTA
Filósofo e professor de Harvard diz que PT procura se livrar de suas bases tradicionais, escarnece da democracia e se confunde com PSDB
Malan e Ruth são os deuses de Lula, diz Unger
FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
O PT trai seus eleitores ao radicalizar na aplicação de um receituário econômico "pseudo-ortodoxo" e busca deliberadamente se
livrar de suas bases político-sociais tradicionais, iniciativa audaciosa em um governo caracterizado por cautela aparente, avalia
Roberto Mangabeira Unger, 55.
O filósofo e professor da faculdade de direito da Universidade
Harvard, ex-mentor do candidato
derrotado à Presidência Ciro Gomes (hoje ministro da Integração
Nacional), Mangabeira diz que,
ao se distanciar de suas bases, o
PT termina por se confundir definitivamente com o PSDB no que
chama de "partido único nacional": aquele que segue sem crítica
o ideário dominante dos países
centrais e trata de tentar "humanizar" a miséria decorrente com a
distribuição de migalhas.
As semelhanças do governo
Luiz Inácio Lula da Silva com o do
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, para Mangabeira,
são totais: "É Malan e dona Ruth.
São os dois deuses tutelares do governo atual", provoca.
Como alternativa à atual política, ele propõe medidas que simultaneamente promovam valorização dos salários e democratização
de oportunidades.
Leia a seguir trechos da entrevista concedida à Folha por e-mail e telefone na última semana.
Folha - O presidente Lula e o governo do PT traíram seus compromissos eleitorais?
Roberto Mangabeira Unger - Para
negar que estejam traindo os
compromissos eleitorais, seria
preciso aceitar uma de duas desculpas: que lá na letra pequeninha
dos documentos em que ninguém prestou atenção estava prevenido tudo que está acontecendo
agora ou que o governo está apenas fazendo a transição penosa e
inevitável a partir do quadro ruinoso que encontrou. São ambas
desculpas esfarrapadas. A primeira, porque toda a nação entende
que Lula foi eleito para mudar o
modelo econômico. A segunda,
porque não se supera, ainda que
gradativamente, uma orientação
radicalizando as práticas que a
definem. E é à radicalização das
políticas de FHC que estamos assistindo num governo que tem
como seus dois motes principais a
confiança financeira para os endinheirados e as cestas de comida
para os famintos.
O pior de tudo isso é o escárnio
da democracia. Que desmoralização mais pungente da ordem democrática do que essa de eleger
um governo para mudar tudo e
aparecerem no dia seguinte da
posse os mesmos que pregavam a
mudança, explicando, com sorrisos amarelos: não dá.
Folha - O que aconteceu?
Mangabeira - Mais grave e desconcertante do que o oportunismo é a confusão. A confusão, ao
contrário do oportunismo, é involuntária.
O núcleo dirigente do PT assimilou a crítica do corporativismo.
O vazio deixado pelo corporativismo, porém, foi surpreendentemente preenchido pela aceitação
de um ideário pseudo-ortodoxo.
Digo pseudo-ortodoxo porque
essa combinação de primazia
atribuída à confiança financeira
com distribuição de comida aos
famintos não tem nada a ver a ortodoxia econômica reconhecida
como tal nas economias centrais
nos últimos 50 anos. É a ortodoxia
da década de 1920 nos Estados
Unidos e na Europa.
É estarrecedor. Ao afastar-se de
sua base histórica no operariado e
na pequena-burguesia organizados, o PT, por meio de seu governo, optou por uma aliança entre o
grande capital -ou apenas o capital financeiro- e os miseráveis.
Folha - Já há sinais de insatisfação mais forte com a proposta de
autonomia do BC. O PT pode perder
o apoio de suas bases tradicionais
se insistir na ortodoxia?
Mangabeira - Isso é verdade,
mas é secundário. O mais grave é
o efeito prejudicial de uma autonomia nesse momento. Em tese
ela não é inerentemente nem útil
nem prejudicial. Mas nesse momento significa só aumentar o
poder de uma elite tecnocrata e financeira hostil a uma alternativa
produtivista. Por isso seria um desastre. Que se inscreve na lógica
atual do governo: homenagear os
preconceitos do capital financeiro. Crêem que sucessivas doses de
bajulação possam provocar uma
chuvarada de dinheiro.
Num governo caracterizado por
tanta cautela aparente, há uma
iniciativa audaciosa: livrar-se de
forma até radical dessa base corporativa e tradicional do PT.
Folha - Essa perda das bases pode
acabar com o que havia de diferença entre o PT e o PSDB?
Mangabeira - A distinção de
uma força política se faz quer pela
sua linha programática quanto
pela sua base política. Esse exemplo mostra como o governo está
se deixando assimilar sob ambos
os aspectos. Vira mais uma vertente do partido único no país:
que dança conforme a música do
ideário dominante no mundo e
tenta humanizar isso, dando comida para os famintos.
Folha - Nessas duas características ele se parece com o governo
FHC?
Mangabeira - Sim. É Malan e dona Ruth. São os dois deuses tutelares do governo atual.
Folha -Qual seria o equívoco central da política econômica?
Mangabeira - É reduzir a condução da política econômica a um
jogo de confiança, especialmente
de confiança dos mercados financeiros. Essa é a lógica central: se o
governo demonstrar austeridade,
o dinheiro volta e o juro baixa.
Não há qualquer país, nessa fase
da história contemporânea, em
que as coisas tenham de fato
acontecido de acordo com esse figurino. Mais precisamente, o
equívoco é confundir uma necessidade -o realismo fiscal- com
uma ilusão -que doses sucessivas de homenagem ao ideário e
aos interesses do mercado financeiro nos devolverão ao crescimento. A manifestação -superficial mas reveladora- de tudo
isso é o problema do juro.
Sim, precisamos persistir no sacrifício fiscal: condição, entre outras, para ampliar a margem de
manobra do governo. E evitar, a
toda custa, a volta a qualquer populismo inflacionário.
Mas não há por que aceitar a
idéia de que a melhor maneira de
fortalecer a economia real do país
é estrangulá-la ainda mais. Enquanto o juro real for superior à
taxa média de retorno dos negócios do Brasil, a atividade produtiva entre nós continuará a ser precária ou milagreira. Bom negócio
mesmo, só banco. E mesmo banco só será bom negócio enquanto
sobreviver a fantasia de que o Estado pode pagar sua dívida.
Bom negócio mesmo no Brasil
agora só o narcotráfico.
Folha - Mas essa política não está
funcionando? O risco-Brasil não
baixou? Agora, dizem, não seria só
esperar um pouco mais para confirmar o controle da inflação e poder
baixar o juro?
Mangabeira - Os fatores que impedem a retomada de crescimento duradouro e includente nem
sequer começaram a ser enfrentados. E nem podem ser se a preliminar continuar a ser: primeiro,
temos de assegurar a confiança,
fazendo tudo que o mercado financeiro quer.
O C Bond pode melhorar. A inflação pode cair -se os trabalhadores continuarem acuados. Mas,
insisto, esse caminho é o rumo da
ruína. O máximo que permitirá é
uma economia que cresce e pára,
de acordo com os humores dos
mercados internacionais. Os países que cresceram na história moderna foram aqueles, como os Estados Unidos, que formularam
estratégias rebeldes. Não se consegue isso com bom comportamento. Não é de "fazer o dever de
casa" que precisa o Brasil. É de
idéia, de resistência, de engenho e
de audácia.
Folha - A globalização não impõe
constrangimentos a todos os países em desenvolvimento?
Mangabeira - Não. O país que
mais dinheiro estrangeiro recebe
é a China comunista que, para o
bem e o mal, faz tudo diferente.
Folha - E a saída?
Mangabeira - A imprensa brasileira está cheia de afirmações de
que não há alternativa, de que a
suposta alternativa significa regresso ao populismo inflacionário
e ao isolamento internacional.
Falsidades repetidas praticamente sem contraditório. Falta de
imaginação a serviço de falta de
escrúpulo.
O Brasil precisa voltar a trabalhar, a produzir. Para que isso
aconteça, há uma sequência de
iniciativas a observar. Logo nos
primeiros meses, seis conjuntos
de iniciativas devem convergir.
Primeiro, e logo de chofre, um
choque não de austeridade, mas
de investimento para deslanchar
o processo. Sobretudo, investimento privado. Abaixo o dogma a
respeito das condições para potencializar a fé empreendedora.
Há enorme disposição reprimida
para investir. Precisamos apoiá-la
por uma combinação de perdão
fiscal, expansão agressiva de crédito pelos bancos públicos, e
"venture capital" -investimento
em novos empreendimentos-
privado quando possível, público
quando necessário. Tudo que for
despesa pública de custeio, fora
das prioridades sociais, tem de ser
cortado até o osso em favor de
despesa pública em investimento.
E para financiar o investimento,
a receita tem de aumentar, não diminuir, só que dentro de outro
desenho tributário. Aumento das
exportações, que afrouxe o constrangimento externo, só pode
ocorrer e surtir efeito como parte
integrante desse novo calor produtivo. Não é preliminar nem
efeito especial.
Segundo, remanejamento dos
juros e dos prazos da dívida pública interna. Duas ilusões persistem
a respeito das finanças públicas:
que essa dívida está sendo paga e
que a única alternativa a aceitar os
termos atuais da administração
da dívida é o calote. Desconhece-se o poder do Banco Central de
ganhar a queda de braço com
gente que não tem alternativa
atraente ao negócio de emprestar
dinheiro ao Estado. Há anos se diz
que o juro não pode ser menor
porque o mercado não deixa. A
verdade chocante, reconhecida
por financistas nacionais e estrangeiros, é que o juro não é menor
porque o governo não quer, e não
quer porque se deixou intimidar e
colonizar mentalmente.
Terceiro, medidas para proteger
as reservas e, quando necessário e
só pelo tempo necessário, apertar
os controles sobre a saída do dinheiro brasileiro. É um recurso
que precisa estar disponível para
que o governo não possa ser
chantageado na hora de a onça
beber água.
Quarto, uma drástica simplificação tributária, radicalizando a
linha que o governo do PT acabou
aceitando. O sacrifício tem de ser
justificado por uma política de estímulo ao investimento e de valorização dos salários. Daí a importância de impostos mais igualizadores e justos do que imposto de
renda, que incide sobre os salários
da classe média. Tributos que alcancem os altos padrões de vida e
a transmissão da riqueza por herança e doação.
Quinto, reforma previdenciária
que não se limite, como essa com
que o governo acena, ao viés fiscalista, de cortar despesa, culpando
os funcionários públicos pelas
consequências do desvio pelo governo do dinheiro destinado a financiar suas aposentadorias. Reforma que construa os elementos
de um regime público de capitalização. Reforma que imponha a
toda a classe média a obrigação de
investir na produção, via fundo
previdenciário, parte do que ganha e que mobilize a poupança de
longo prazo para o investimento
de longo prazo. É condição para
não depender da poupança estrangeira. É meio para o Brasil poder andar com as próprias pernas.
Folha - Mas de onde vem a inclusão social nesse modelo?
Mangabeira - A fecundidade
tanto econômica quanto social
dessas medidas depende de sua
combinação com duas outras iniciativas que lhe revelam a natureza íntima: valorização dos salários
e democratização das oportunidades. Portanto, democracia econômica do lado da demanda e do
lado da oferta.
A política social mais importante num país como o nosso não é
aquela que apenas atenua o sofrimento de alguns, embora seja justo atenuá-lo. É a que está implícita
na democratização da economia.
Política social no Brasil hoje é salário e oportunidade econômica e
educativa.
Folha - Mas como melhorar os salários sem que isso se traduza na
volta da inflação?
Mangabeira - Soluções diferentes para cada nível do nosso assalariado tão desigual.
Na base mais pobre, desoneração completa da folha salarial, para ajudar a acabar com a informalidade, e subsídios fiscais ao emprego e à qualificação. No meio
do assalariado, regras que protejam os trabalhadores temporários, e não sacrifiquem os interesses dos instáveis ou desempregados aos que gozam dos melhores
empregos. E, na parte superior do
assalariado, efetivação do princípio constitucional de participação
dos trabalhadores nos lucros das
empresas. Princípio que se deve
estender, pouco a pouco, a toda a
hierarquia salarial.
Nada disso é aumento meramente nominal do salário. É mudança das condições que ajudam
a definir o salário real. Sem isso,
não há como consolidar bases para um mercado de consumo em
massa no Brasil.
Folha - E a democratização de
oportunidades?
Mangabeira - Crescimento sustentável e socialmente includente
depende de transformação fundamental: ampliar os meios de
acesso ao ensino de qualidade, ao
emprego e à tecnologia em favor
dos trabalhadores. Há hoje no
Brasil uma nova cultura de auto-ajuda e iniciativa. Faltam-lhe os
instrumentos.
É disso que precisamos. Não
uma política industrial de resgatar e favorecer uma panelinha de
grandes apaniguados. A construção de toda uma teia de fundos e
centros de apoio, para dar equipamento e oportunidade à multidão
de empreendedores. Temos onde
começar: uma tradição de bancos
públicos que agora precisam ser
reinventados e descentralizados e
organizações admiráveis embora
desiguais como o Sebrae.
O Brasil precisa também de
grandes empresas capazes de
atuar em escala mundial. Apoio
aos graúdos, entretanto, só se filtrado por regras impessoais. E só
se contrabalançado por práticas
que aliem as entidades públicas
de fomento à multidão de empreendedores emergentes. Se política industrial não for isso, é assalto.
Folha - E a moralização tão falada
pelo PT, que lugar ocupa nesse projeto?
Mangabeira - Há muito que o
Brasil não tem um governo tão
cheio de gente de boa-fé e com tão
pouco bandido no primeiro escalão. Que pelo menos transformem essa honestidade em iniciativa, dando à sociedade condições
de respirar e de fazer por si mesma as mudanças que o governo
está confuso e temeroso demais
para promover.
Dois pontos são cruciais, porque fecham as fontes principais
da corrupção. O primeiro ponto é
o financiamento público das campanhas eleitorais. Não há investimento melhor que o povo brasileiro possa fazer: com relativamente poucos recursos, diminuiria radicalmente a influência do
dinheiro sobre a política. É obra
que teria de ser completada por
meio de reforma partidária que
caminhasse em direção ao sistema de listas fechadas.
O segundo ponto é a privatização das falências. Tirar o governo
do negócio ruinoso e corruptor de
ser o garantidor implícito de todo
grande negócio no Brasil. Empresário falido tem de ficar pobre, para que acabemos com esse reino
dos espertalhões sobre os otários
que é o nosso regime.
Folha - O sr. acredita que o PT
possa se converter a esse projeto,
abandonando a ortodoxia?
Mangabeira - Não posso negar
meu ceticismo a respeito da possibilidade de ocorrer essa conversão do governo do PT. Parecem
de tal maneira atemorizados que
terão dificuldade em dar os primeiros passos. Além de certo
ponto, enfraquecimento da vontade e confusão das idéias se misturam.
Texto Anterior: Outro lado: Presidente diz que os saques foram regulares Próximo Texto: Frases Índice
|