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NO PLANALTO
As travessuras de uma legenda chamada Zé Dirceu
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
São Paulo , 1968. Tempo de
Beatles, de Tropicália, de
amor livre, de culto a Che Guevara, de ebulição universitária, de
repressão militar...
A USP, parcialmente tomada
por estudantes, fervilhava. Uma
das salas, antes voltada ao ensino
de grego, passou a chamar-se "antro do Zé Dirceu".
Era ali que o líder da estudantada, cabeludo boa-pinta, tenros 22
anos, extravasava as pulsões sexuais. Heloísa, 19, bela morena
com quem saía havia dias, deixara-se conduzir ao "antro".
No instante em que se despiam,
Zé Dirceu, cujo nome já vinha
precedido de fulgurante legenda,
acomodou sobre uma mesinha o
22 que trazia na cintura.
Súbito, Heloísa apossou-se do
revólver. Soltou a trava e abriu a
arma. Tal foi a sua destreza que
Zé Dirceu farejou algo suspeito.
Olhos grudados no dorso de Heloísa, pensou: "Que pena, essas
costas tão lindas..."
Pediu que esperasse. Foi ter com
os companheiros que zelavam por
sua segurança. "Podem ir lá, acho
que a menina é da polícia."
Detiveram-na. Numa incursão
pelo apartamento dela, deram
com relatórios recheados de nomes e um organograma do movimento estudantil.
Estamos percorrendo as páginas
do livro ""Abaixo a Ditadura"
(Editora Garamond, 1998). Foi escrito por Vladimir Palmeira e por
José Dirceu, o presidente PT.
O Zé Dirceu do livro transcende
o quadro social e familiar em que
foi criado. Nasceu em 16 de março
de 46, nas pegadas da bomba atômica, jogada sobre Hiroshima e
Nagasaki sete meses antes. Vem
de lar católico de Santa Rita do
Passa Quatro (MG).
Integrava "uma pequena gangue de garotos". Identificavam-se
por um assobio. "Que acabou se
tornando o terror da cidade."
Amarravam barbante em rabo de
cachorro, roubavam frutas nos
quintais... "Eu era o pior."
Dono de uma tipografia chamada Ordem e Progresso, seu Castorino, o pai de Zé Dirceu, era udenista. O sócio dele, João Mota, do
PTB getulista. Travavam fervorosas polêmicas, seguidas pelo pequeno Zé Dirceu.
Em 61, aos 15 anos, mudou-se
para São Paulo. Espremia-se com
sete rapazes numa quitinete. Decorridos oito meses, foi expulso.
"Eu aprontava muito."
Empregou-se como "office-boy"
numa imobiliária. O dono, Nicola
Avalone, era deputado estadual
pelo PDC.
A convivência com Avalone lhe
rendeu um "curso prático de política". Ia diariamente à Assembléia Legislativa de São Paulo.
"Presenciei acordos e articulações,
vi o Ademar de Barros governar,
soube do famoso dr. Rui -apelido que ele dava à amante, de cuja
casa a guerrilha levaria um cofre
de dólares."
Embora menor, frequentava cabarés. "Eu podia ter virado um
trombadinha". Estudava à noite
no Colégio Paulistano. Sob Jango,
reunia-se com colegas para ler
Marx e Lenin.
Em 64, ano do golpe, levou bomba na USP. Passou na PUC, curso
de direito. Adorava história e geografia. Detestava matemática, física e química.
Integrou-se à "Turma da Canalha", que se insurgia contra hábitos impostos pela direção da PUC.
Exigiram que homens e mulheres,
antes separados, passassem a se
misturar em sala de aula.
Sentava-se à mesa do professor,
acomodava os pés sobre as carteiras... Virou sensação. Em 65, filiou-se ao PCB. Em 66, a primeira
prisão tonificou-lhe a fama.
Morava só. Namorava a "deslumbrante" Iara Iavelberg, que
mais tarde viveria com Carlos Lamarca e, como ele, seria assassinada na Bahia. Simultaneamente, dividia colchões com Ivone,
uma bailarina espanhola.
Certa noite, policiais invadiram
o apartamento. Levaram-no preso. Franco Montoro, professor na
PUC, depôs a seu favor. Solto, descobriu a razão da cana.
Afeiçoara-se a dois vizinhos italianos, também detidos. Eram militantes de uma célula clandestina
e militarizada da ALN. "Entrei de
gaiato na história. Convenci a polícia de que só queria sair com as
meninas, curtir a vida."
Virou presidente de centro acadêmico. Em 67, já dirigia a União
Estadual dos Estudantes. Vinculou-se à Dissidência, corrente que
se descolou do PCB, "aburguesado". Opunha-se, porém, à luta armada.
Tentou virar articulista de jornal. Entregou um texto a Cláudio
Abramo. Queria vê-lo publicado
na Folha. Abramo leu, amassou e
jogou no lixo.
"Você gosta de ler? Então continua lendo. Depois, escreve de novo e traz outro artigo". Manteve o
relacionamento com Abramo.
Mas não ousou um segundo texto.
"Entendi o recado."
A descoberta do cavalo de tróia
de saias que a polícia infiltrara na
sala de grego havia indicado que
a repressão preparava o bote.
Deu-se em outubro de 68, num sítio de Ibiúna (SP), durante o célebre congresso estudantil.
Reuniram-se 800 estudantes.
Elegeriam o presidente da UNE.
Zé Dirceu concorreria. Surpreendidos pela polícia, foram à garra.
Ficharam-se todos. Liberou-se a
maioria.
Oito líderes foram levados ao
Forte Itaipu, em Santos. Beneficiados por habeas corpus, quatro
saíram. O resto ficou no xilindró.
Entre eles, Zé Dirceu. Coisa moderada, sem tortura.
Foram libertados em 7 de setembro de 69, junto com um grupo de políticos, trocados pelo embaixador americano Charles Elbrick. Zé Dirceu rumou para Cuba. Recebeu-o Fidel Castro. Abrigou-se na "casa dos 28", ninho de
treinamento de guerrilha.
Entrou no Brasil em 71, como
integrante do Molipo (Movimento de Libertação Popular). Um
equívoco que poderia ter-lhe custado o pescoço. Voltou a Cuba no
mesmo ano, fez plástica no rosto
com médicos chineses e, em 75, retornou ao Brasil.
Vivendo clandestinamente em
Cruzeiro do Oeste (PR), sob falsa
identidade, na pele de dono de alfaiataria, virou mito. Casou-se
com uma dona de butique, teve
um filho e só emergiu depois da
anistia, com o rosto reconstituído
por nova plástica cubana. Elegeu-se deputado estadual e federal.
Apossou-se da máquina do PT.
Hoje, 56, cabelos ralos, levemente nevados, escreve a mais nova
travessura de sua biografia. Sob
um iminente governo Lula, erigido em cima de fundações moderadas que ajudou a concretar, será o segundo homem da República.
Vencendo Lula, o político Zé
Dirceu pode, finalmente, ajudar a
desenhar o Brasil de sonho que o
estudante Zé Dirceu pleiteava. Ou
não haverá clandestinidade capaz de livrá-lo de um epílogo
acerbo.
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