São Paulo, domingo, 21 de novembro de 2004

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ARTIGO

O maior economista foi um servidor da República

FRANCISCO DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Celso Furtado nos deixou na manhã de ontem, sábado, 20 de novembro. A República ficou mais escura, menor, e nós todos órfãos, humilhados e ofendidos. Privados de sua lucidez incansável, de sua visão ampla e generosa, de sua fidelidade republicana e democrática sem paralelo na vida pública brasileira.
Furtado não foi apenas o maior economista brasileiro e latino-americano de todos os tempos e um dos grandes cientistas sociais de nosso tempo.
Para além disso, foi um servidor da República, um servidor do povo brasileiro, sem alardes, sem farisaísmos, sem declarações grandiloquentes. Se sua obra teórica faz parte da própria construção nacional, sem o que não nos reconhecemos, sua obra de servidor público, talvez com menor visibilidade, é um patrimônio da nação, que convida a nos debruçarmos sobre sua figura austera, numa república plagada de vícios patrimonialistas.
Nos últimos 50 anos, a discussão sobre o Brasil, seus problemas, suas potencialidades, seus impasses e dilemas passou necessariamente pela obra de Furtado, desde que empreendeu sua cruzada oferecendo uma alternativa de interpretação e de ação contra os liberais-autoritários de sua geração e, mais recentemente, contra os novos e falsos liberais. No fundo, os liberais brasileiros foram e continuam sendo disfarces de autoritários.
Nos anos 50, forneceu as bases para um programa nacional de desenvolvimento econômico, que plasmou o Plano de Metas de Kubistchek, com seu trabalho à frente do Grupo Mixto BNDE-Cepal, de que foi o arquiteto e líder insubstituível.
Ainda na mesma década, qual novo Quixote, montado no Rocinante da Razão, enfrentou os "industriais da seca" e o latifúndio, tentando trazer o Nordeste para o século 20, engatando-o no desenvolvimento nacional, que então mostrava capacidade de resgatar todas nossas pesadas dívidas. Sua obra na Sudene é de uma revolução federativa de que a ciência social no Brasil ainda não avaliou sua profundidade.
Sua dignidade, que prescindia, e mais, se horrorizava com os procedimentos da auto-heroicização, é tão contundente frente aos padrões predominantes no Brasil que mal se pode acreditar.
Testemunhei de perto, nos fecundos cinco anos em que trabalhei sob sua liderança na Sudene, desde o gesto aparentemente insignificante de partilhar o mesmo quarto num hotel na Bahia, para não estimular gastos perdulários com o dinheiro público, até sua firme e decidida reprimenda ao golpista general Justino Alves Bastos.
Na tensa calma da tarde de 1º de abril, aquele obtuso soldado comandante do 4º Exército se queixou de que Furtado não havia colaborado no transe da tomada do poder pelos militares.
Ele respondeu sem bravatas que era um servidor público, e que o Exército não solicitasse sua colaboração, logo ele que foi oficial voluntário da FEB, para um golpe de Estado que havia destituído o governo legitimamente eleito, que repugnava às suas convicções republicanas.
Dali, seu nome saiu para a primeira e nefanda lista de cassações de direitos políticos.
Poucos cientistas sociais podem se orgulhar de terem visto suas idéias transformarem-se em força social e política; a obra de Furtado passou por essa dura prova da História. Contra ou a favor, ela exige que se tome posição a seu respeito.
Na sua hora final, que permanecerá indecifrável para todo o sempre, o paraibano de Pombal talvez tenha pensado com amargura no destino da nação à qual dedicou o melhor de suas forças e de seu talento. Nós, seus discípulos, continuaremos com nossa teimosia a dizer que nada foi em vão, que suas idéias continuarão a fecundar a inteligência brasileira e a ajudar nosso povo a conquistar os seus direitos. O futuro não será um amontoado de ruínas.


Francisco de Oliveira é professor titular aposentado de sociologia do Departamento de Sociologia da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), da USP, e coordenador científico do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da faculdade


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