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ARTIGO
O maior economista foi um servidor da República
FRANCISCO DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Celso Furtado nos deixou na
manhã de ontem, sábado, 20 de
novembro. A República ficou
mais escura, menor, e nós todos
órfãos, humilhados e ofendidos.
Privados de sua lucidez incansável, de sua visão ampla e generosa,
de sua fidelidade republicana e
democrática sem paralelo na vida
pública brasileira.
Furtado não foi apenas o maior
economista brasileiro e latino-americano de todos os tempos e
um dos grandes cientistas sociais
de nosso tempo.
Para além disso, foi um servidor
da República, um servidor do povo brasileiro, sem alardes, sem farisaísmos, sem declarações grandiloquentes. Se sua obra teórica
faz parte da própria construção
nacional, sem o que não nos reconhecemos, sua obra de servidor
público, talvez com menor visibilidade, é um patrimônio da nação,
que convida a nos debruçarmos
sobre sua figura austera, numa república plagada de vícios patrimonialistas.
Nos últimos 50 anos, a discussão sobre o Brasil, seus problemas, suas potencialidades, seus
impasses e dilemas passou necessariamente pela obra de Furtado,
desde que empreendeu sua cruzada oferecendo uma alternativa de
interpretação e de ação contra os
liberais-autoritários de sua geração e, mais recentemente, contra
os novos e falsos liberais. No fundo, os liberais brasileiros foram e
continuam sendo disfarces de autoritários.
Nos anos 50, forneceu as bases
para um programa nacional de
desenvolvimento econômico, que
plasmou o Plano de Metas de Kubistchek, com seu trabalho à frente do Grupo Mixto BNDE-Cepal,
de que foi o arquiteto e líder insubstituível.
Ainda na mesma década, qual
novo Quixote, montado no Rocinante da Razão, enfrentou os "industriais da seca" e o latifúndio,
tentando trazer o Nordeste para o
século 20, engatando-o no desenvolvimento nacional, que então
mostrava capacidade de resgatar
todas nossas pesadas dívidas. Sua
obra na Sudene é de uma revolução federativa de que a ciência social no Brasil ainda não avaliou
sua profundidade.
Sua dignidade, que prescindia, e
mais, se horrorizava com os procedimentos da auto-heroicização,
é tão contundente frente aos padrões predominantes no Brasil
que mal se pode acreditar.
Testemunhei de perto, nos fecundos cinco anos em que trabalhei sob sua liderança na Sudene,
desde o gesto aparentemente insignificante de partilhar o mesmo
quarto num hotel na Bahia, para
não estimular gastos perdulários
com o dinheiro público, até sua
firme e decidida reprimenda ao
golpista general Justino Alves
Bastos.
Na tensa calma da tarde de 1º de
abril, aquele obtuso soldado comandante do 4º Exército se queixou de que Furtado não havia colaborado no transe da tomada do
poder pelos militares.
Ele respondeu sem bravatas que
era um servidor público, e que o
Exército não solicitasse sua colaboração, logo ele que foi oficial
voluntário da FEB, para um golpe
de Estado que havia destituído o
governo legitimamente eleito,
que repugnava às suas convicções
republicanas.
Dali, seu nome saiu para a primeira e nefanda lista de cassações
de direitos políticos.
Poucos cientistas sociais podem
se orgulhar de terem visto suas
idéias transformarem-se em força
social e política; a obra de Furtado
passou por essa dura prova da
História. Contra ou a favor, ela
exige que se tome posição a seu
respeito.
Na sua hora final, que permanecerá indecifrável para todo o sempre, o paraibano de Pombal talvez
tenha pensado com amargura no
destino da nação à qual dedicou o
melhor de suas forças e de seu talento. Nós, seus discípulos, continuaremos com nossa teimosia a
dizer que nada foi em vão, que
suas idéias continuarão a fecundar a inteligência brasileira e a
ajudar nosso povo a conquistar os
seus direitos. O futuro não será
um amontoado de ruínas.
Francisco de Oliveira é professor titular aposentado de sociologia do Departamento de Sociologia da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), da USP, e coordenador científico
do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da faculdade
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