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São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 2003

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JANIO DE FREITAS

Quem fala e quem faz

O problema de saber quem governa o Brasil não se resolveu com a substituição de Fernando Henrique Cardoso.
No governo passado, a tarefa presidencial de definir rumos e decisões, em matéria econômica, foi transferida para Gustavo Franco e, depois, para Armínio Fraga em associação, ambos, com Pedro Malan, na qual os dois primeiros solucionavam a baixa capacidade decisória do então ministro da Fazenda (por sua vez muito influenciado também por burocratas internacionais e executivos da especulação mundial).
Fernando Henrique cumpriu, muito bem na maior parte dos dois mandatos, o papel de dourar, para a opinião pública, a política econômica oposta a todas as aspirações notórias dos brasileiros, exceto só a menor inflação. Como, nos países ditos em desenvolvimento, o centro efetivo do poder está no domínio da política econômica, ao qual todo o restante da administração fica inapelavelmente subjugado, deslocar da Presidência esse domínio é deslocar o próprio papel presidencial de governo.
Três exemplos factuais ajudam a entender como estão dispostas hoje as faces do poder de governo.
Em um de seus discursos diários da semana, Luiz Inácio Lula da Silva falou da disposição do governo de investir, não na construção de novos hospitais, mas na necessidade de bem equipar os já existentes e dotá-los de médicos em número adequado e que "não precisem trabalhar até em sete empregos" para melhorar um pouco o salário.
Da oratória de Lula à equipe econômica, o projeto do governo muda alguma coisa: o Orçamento feito pela equipe econômica para 2004 diminui as verbas para aplicação em Estados e municípios, ou seja, no atendimento público pelo país afora. Se em 2003 o corte de verbas, para fazer saldo com que pagar mais e melhores juros, levou a faltar remédio até para as urgências de aidéticos, em 2004 as péssimas condições do serviço público de saúde vão estar ainda piores.
O Orçamento feito pela equipe econômica é submetido ao Congresso para possíveis emendas corretivas. Alertado para os absurdos do Orçamento relativos à saúde, Jorge Bittar escafedeu-se com esta explicação: "Não cabe a mim, como relator, alterar com uma canetada um ato de planejamento estratégico do governo". Era exatamente o seu dever de relator. Em um lugar do brio para cumprir esse dever parlamentar e social, Jorge Bittar põe sua ambição de ser candidato do PT, e portanto do governo Lula, a prefeito do Rio.
Do ensino, Lula fala todos os dias. O caso da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que o recente resultado do provão outra vez põe no topo da qualidade, ilustra bem o projeto do governo para o ensino. A UFRJ pede ao Ministério da Educação a contratação, para suprir buracos no seu quadro docente, de 539 professores (só nos últimos três meses, 150 professores pediram aposentadoria, tangidos pela "reforma" da Previdência).
Resposta do ministério: dentro da verba que lhe é destinada, a UFRJ tem autonomia para fazer as contratações que quiser. Mas a equipe econômica não concorda com orçamento da Educação que permitirá o repasse necessário à UFRJ, nem o de fato necessário a qualquer outra universidade federal. Para a educação, o arrocho de 2003 não será menos cruel em 2004.
Terceiro ponto focal: até novembro, foram concedidas 16 mil aposentadorias a funcionários, e nem se sabe o número das que cumprem o percurso para a concessão. Só as concedidas representam, com seus 13 vencimentos anuais, mais quase 210 mil pagamentos a aposentados já em 2004. A estes, some-se o gasto com as contratações que se mostrem indispensáveis. E temos uma primeira visão da "reforma" que a equipe econômica impôs à Previdência: o bilhão a ser economizado, que já tinha sobrevida de curta duração, é deseconomizado pela própria "reforma". Da qual Lula orgulha-se de "ter feito o que os outros governos tentaram muito e não conseguiram".
Palavras de Lula para um lado, imposições da equipe econômica para outro. A Lula cabe o papel, como a Fernando Henrique, de dourar, para a opinião pública, a política econômica oposta a todas as aspirações notórias dos brasileiros. Uma diferença, porém, na comparação entre os dois presidentes: Fernando Henrique havia aderido doutrinariamente à primazia absoluta do "mercado", à globalização e demais teses do Consenso de Washington. Lula não doura a política econômica do seu agrado, mas a do seu desejo suscitado por uma combinação que por certo o incomoda: medo de possíveis reações da classe rica, se não a agrada como manda a tradição, e o que ele toma como habilidade, ou esperteza, política.
No poder real há outra diferença. Como presidente do Banco Central, Henrique Meirelles tem a influência que os juros vêm mostrando, mas não tem a influência muito mais abrangente que Gustavo Franco e, sobretudo, Armínio Fraga tiveram. Em compensação, talvez má compensação, neste governo ganhou relevância decisória um posto que, no anterior, cumpria as funções normais: o secretário do Tesouro, Joaquim Levy, é um ultratecnocrata com palavra decisiva na equipe de economistas de direita que Pedro Malan sugeriu ao seu sucessor, e que são a verdadeira cabeça de Antonio Palocci. E o centro que detém o poder teoricamente presidencial de orientação e decisão sobre a política econômica e, portanto, sobre todo o governo.
No fundo, o que o Brasil precisa há muito tempo é de presidente com as funções de presidente.


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