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JANIO DE FREITAS
Quem fala e quem faz
O problema de saber quem
governa o Brasil não se resolveu com a substituição de Fernando Henrique Cardoso.
No governo passado, a tarefa
presidencial de definir rumos e
decisões, em matéria econômica,
foi transferida para Gustavo
Franco e, depois, para Armínio
Fraga em associação, ambos, com
Pedro Malan, na qual os dois primeiros solucionavam a baixa capacidade decisória do então ministro da Fazenda (por sua vez
muito influenciado também por
burocratas internacionais e executivos da especulação mundial).
Fernando Henrique cumpriu,
muito bem na maior parte dos
dois mandatos, o papel de dourar,
para a opinião pública, a política
econômica oposta a todas as aspirações notórias dos brasileiros,
exceto só a menor inflação. Como, nos países ditos em desenvolvimento, o centro efetivo do poder
está no domínio da política econômica, ao qual todo o restante
da administração fica inapelavelmente subjugado, deslocar da
Presidência esse domínio é deslocar o próprio papel presidencial
de governo.
Três exemplos factuais ajudam
a entender como estão dispostas
hoje as faces do poder de governo.
Em um de seus discursos diários
da semana, Luiz Inácio Lula da
Silva falou da disposição do governo de investir, não na construção de novos hospitais, mas na
necessidade de bem equipar os já
existentes e dotá-los de médicos
em número adequado e que "não
precisem trabalhar até em sete
empregos" para melhorar um
pouco o salário.
Da oratória de Lula à equipe
econômica, o projeto do governo
muda alguma coisa: o Orçamento
feito pela equipe econômica para
2004 diminui as verbas para aplicação em Estados e municípios,
ou seja, no atendimento público
pelo país afora. Se em 2003 o corte
de verbas, para fazer saldo com
que pagar mais e melhores juros,
levou a faltar remédio até para as
urgências de aidéticos, em 2004 as
péssimas condições do serviço público de saúde vão estar ainda
piores.
O Orçamento feito pela equipe
econômica é submetido ao Congresso para possíveis emendas
corretivas. Alertado para os absurdos do Orçamento relativos à
saúde, Jorge Bittar escafedeu-se
com esta explicação: "Não cabe a
mim, como relator, alterar com
uma canetada um ato de planejamento estratégico do governo".
Era exatamente o seu dever de relator. Em um lugar do brio para
cumprir esse dever parlamentar e
social, Jorge Bittar põe sua ambição de ser candidato do PT, e portanto do governo Lula, a prefeito
do Rio.
Do ensino, Lula fala todos os
dias. O caso da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que o recente resultado do provão outra
vez põe no topo da qualidade,
ilustra bem o projeto do governo
para o ensino. A UFRJ pede ao
Ministério da Educação a contratação, para suprir buracos no seu
quadro docente, de 539 professores (só nos últimos três meses, 150
professores pediram aposentadoria, tangidos pela "reforma" da
Previdência).
Resposta do ministério: dentro
da verba que lhe é destinada, a
UFRJ tem autonomia para fazer
as contratações que quiser. Mas a
equipe econômica não concorda
com orçamento da Educação que
permitirá o repasse necessário à
UFRJ, nem o de fato necessário a
qualquer outra universidade federal. Para a educação, o arrocho
de 2003 não será menos cruel em
2004.
Terceiro ponto focal: até novembro, foram concedidas 16 mil
aposentadorias a funcionários, e
nem se sabe o número das que
cumprem o percurso para a concessão. Só as concedidas representam, com seus 13 vencimentos
anuais, mais quase 210 mil pagamentos a aposentados já em 2004.
A estes, some-se o gasto com as
contratações que se mostrem indispensáveis. E temos uma primeira visão da "reforma" que a
equipe econômica impôs à Previdência: o bilhão a ser economizado, que já tinha sobrevida de curta duração, é deseconomizado pela própria "reforma". Da qual Lula orgulha-se de "ter feito o que os
outros governos tentaram muito
e não conseguiram".
Palavras de Lula para um lado,
imposições da equipe econômica
para outro. A Lula cabe o papel,
como a Fernando Henrique, de
dourar, para a opinião pública, a
política econômica oposta a todas
as aspirações notórias dos brasileiros. Uma diferença, porém, na
comparação entre os dois presidentes: Fernando Henrique havia
aderido doutrinariamente à primazia absoluta do "mercado", à
globalização e demais teses do
Consenso de Washington. Lula
não doura a política econômica
do seu agrado, mas a do seu desejo suscitado por uma combinação
que por certo o incomoda: medo
de possíveis reações da classe rica,
se não a agrada como manda a
tradição, e o que ele toma como
habilidade, ou esperteza, política.
No poder real há outra diferença. Como presidente do Banco
Central, Henrique Meirelles tem a
influência que os juros vêm mostrando, mas não tem a influência
muito mais abrangente que Gustavo Franco e, sobretudo, Armínio Fraga tiveram. Em compensação, talvez má compensação,
neste governo ganhou relevância
decisória um posto que, no anterior, cumpria as funções normais:
o secretário do Tesouro, Joaquim
Levy, é um ultratecnocrata com
palavra decisiva na equipe de
economistas de direita que Pedro
Malan sugeriu ao seu sucessor, e
que são a verdadeira cabeça de
Antonio Palocci. E o centro que
detém o poder teoricamente presidencial de orientação e decisão
sobre a política econômica e, portanto, sobre todo o governo.
No fundo, o que o Brasil precisa
há muito tempo é de presidente
com as funções de presidente.
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