São Paulo, domingo, 22 de setembro de 2002

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ENTREVISTA

Próximo presidente enfrentará cenário pior, diz Brasilio Sallum Jr.

Sucessor de FHC terá raio de ação reduzido, diz sociólogo

LIA HAMA
DA REDAÇÃO

O cenário a ser enfrentado pelo próximo presidente em 2003 será muito mais difícil do que aquele encontrado por Fernando Henrique Cardoso, tanto em 1994 como em 1998. Além de estar de mãos atadas pelos compromissos assumidos com o Fundo Monetário Internacional, o presidente eleito deverá liderar uma coalizão política muito menor do que a de FHC e sua capacidade de governar por meio de medidas provisórias será fortemente limitada pela emenda aprovada pelo Congresso no ano passado.
A avaliação é de Brasilio Sallum Jr., 56, professor do Departamento de Sociologia da USP. Sallum foi o organizador da série de artigos sobre o primeiro mandato de FHC reunidos na revista "Tempo Social", de outubro de 1999.
Veja a seguir trechos da entrevista concedida à Folha na última quarta-feira, na qual ele analisa a sucessão presidencial e faz um balanço dos oito anos da era FHC.
 

Folha - Em seus artigos, o sr. afirma que o bloco de centro-direita que ascendeu ao poder com FHC foi polarizado entre uma ala "liberal-fundamentalista" e outra "liberal-desenvolvimentista" . A ala "fundamentalista" teria dado a tônica do primeiro mandato, mas, a partir da mudança cambial, em 99, estariam dadas as condições para que o liberal-desenvolvimentismo assumisse a liderança do processo. Que análise o sr. faz hoje? Que grupo deu a tônica do segundo mandato?
Brasilio Sallum Jr.
- O segundo mandato foi marcado por uma perda de autonomia muito grande da Presidência. Em primeiro lugar porque o governo estava manietado por um acordo assinado com o Fundo Monetário que estabelecia um limite muito estrito de gastos. Em segundo lugar porque, do ponto de vista político, se enfraqueceu muito o poder do presidente sobre a coalizão governista. Como o ajuste fiscal era absolutamente central para preservar as relações externas, as possibilidades de expansão dessa ala mais desenvolvimentista foram muito limitadas. A partir do ano passado isso ficou inviabilizado em função do estrangulamento externo, da crise de energia e da crise na Argentina.

Folha - Mas num primeiro momento o presidente optou por priorizar essa ala fundamentalista, não?
Sallum Jr.
- Sim, mas isso foi no primeiro mandato. Depois, com as crises, a Presidência passou a administrar os conflitos internos, fazendo concessões a uns e a outros e, no final do primeiro mandato, parecia tender para o desenvolvimentismo, com a história [da criação" do Ministério da Produção. Mas aí houve o escândalo das fitas [do BNDES" e uma parte do pessoal que estava querendo liderar essa política desenvolvimentista saiu do governo.

Folha - Mendonça de Barros?
Sallum Jr.
- Exatamente. Basicamente os dois Mendonças [Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-ministro das Comunicações, e José Roberto Mendonça de Barros, ex-secretário-executivo da Camex".

Folha - Quais são os grupos e interesses que a candidatura Serra representa e no que diferem em relação ao bloco hegemônico que deu sustentação a FHC?
Sallum Jr.
- A candidatura Serra reduz um pouco o espectro dos apoios que tinha Fernando Henrique. O governo atual tinha um apoio muito generalizado, que ia da centro-esquerda até a extrema-direita. Teve um apoio muito grande de oligarquias regionais que hoje não apóiam o Serra. Ele teve apoio nas áreas liberais do empresariado e da intelectualidade, especialmente de economistas, que hoje vêem o Serra de forma um pouco relutante.

Folha - O PT é o verdadeiro partido social-democrata no Brasil? Como o sr. vê a mudança de discurso do PT em direção ao centro?
Sallum Jr.
- O PT está se tornando um partido social-democrata, sem dúvida nenhuma. O PT iniciou o governo Fernando Henrique com um discurso socialista, com reivindicações do tipo estatista. No final do primeiro mandato e no segundo, ao menos as lideranças principais do PT foram paulatinamente se ajustando ao ambiente mais liberalizante. O representante principal do que eu chamo de liberal-desenvolvimentismo dentro do governo era o Serra. Fora do governo era o Delfim [Netto". Se você acompanhar as declarações dos deputados do PT, a ótica deles não contrariava o tipo de crítica que o Delfim fazia à política do governo.

Folha - Quer dizer, o discurso liberal-desenvolvimentista aglutinou desde Serra até Delfim Netto e deputados do PT...
Sallum Jr.
- A orientação geral do programa do PT é muito parecida com a do Serra. O que ocorre é que a liderança do partido está nesse barco, mas eu não sei até que ponto o conjunto do partido está. Basicamente o Lula, se vencer, vai ter dois problemas pela frente: de um lado uma enorme pressão de movimentos sociais de toda a ordem - MST, sindicatos de funcionários, movimentos populares etc.- que provavelmente se mobilizarão na expectativa de que enfim encontraram um Papai-Noel. Por outro lado, vai ter certamente a desconfiança dos credores, dos grandes capitalistas, se vai manter ou não a política de ajuste e garantir os contratos.

Folha - Numa eventual vitória de Lula, como o sr. vê a reorganização de forças políticas?
Sallum Jr.
- Do ponto de vista político eu não vejo como o Lula possa governar sem fazer alianças em direção ao centro. Os candidatos privilegiados são o PSDB e o PMDB. É claro que tem os partidos menores, PSB e eventualmente PDT. Mas é inevitável um governo de coalizão. Quanto ao Serra, se eleito, também terá que ter uma oposição civilizada por parte do PT ou um apoio crítico. Porque, não sendo assim, ele vai ter que negociar justamente com aqueles grupos que o estão atacando hoje. Grupos chamados de oligárquicos como o dos Sarney, de ACM e também de Tasso [Jereissati", com quem [Serra" tem uma relação difícil.

Folha - Como o sr. analisa o movimento de ascensão e queda de Ciro Gomes nas pesquisas? Qual o significado dessa candidatura?
Sallum Jr.
A candidatura Ciro nasceu como uma idéia de fortalecimento do PPS e depois virou o depositório de todas as dissidências governistas. Claro que o Ciro é carismático, bem-apessoado e em um certo momento apresentou-se como uma alternativa ao Lula. Mas tinha uma certa fragilidade que acabou se manifestando. Em primeiro lugar, a aliança partidária no qual ele cresceu era absolutamente heterogênea, o que poderia dar certo em função de um eventual carisma. Só que ele acabou mostrando características que fizeram com que o eleitorado se assustasse. Um estilo muito arrogante, autoritário. A lembrança de [Fernando" Collor ainda está muito fresca. Esse estilo de governo, de quem não tem compromissos com ninguém, soa um pouco assustador, embora sejam coisas muito diferentes Collor e Ciro.

Folha - Como o sr. analisa o cenário que o próximo presidente enfrentará? Que margem de manobra terá o governo para uma eventual mudança na política econômica?
Sallum Jr.
Acho que o próximo presidente vai ter uma margem [de manobra" bem pior. Quando o Fernando Henrique assumiu o segundo mandato, houve a crise cambial e se refez todos os acordos com o Fundo. Mas não se tinha a situação que temos hoje, de fuga de capitais e aversão ao risco. O Brasil precisa entre US$ 45 bilhões e US$ 50 bilhões por ano para fechar as contas. A margem de manobra fiscal é mínima. Tem que se preservar o superávit primário de 3,75% do PIB, numa situação de fortes demandas sociais. Você tem um conjunto de promessas feitas por todos os candidatos. Tudo isso é um ônus.
Nunca se terá uma coalizão tão grande quanto a do Fernando Henrique. E as pessoas não se dão conta de outra coisa: não se trata só do tamanho e da solidez da coalizão que vão diminuir. Você tem uma lei que regula a possibilidade do Executivo de emitir medidas provisórias muito mais restritiva do que antes. O Executivo precisa produzir uma maioria para que qualquer medida provisória seja aprovada, coisa que o Fernando Henrique não precisa hoje porque a medida provisória vai se mantendo por decurso de prazo.
Em segundo lugar, você terá uma outra situação: o Fernando Henrique teve possibilidade de controlar de alguma maneira a capacidade política dos governadores pelo endividamento. Os governadores não tinham Estados ajustados do ponto de vista fiscal e eram extremamente endividados. O novo governo vai encontrar os Estados já ajustados, em boa parte, e com plena capacidade política. Esses governadores terão mais autonomia porque não dependem tanto financeiramente do governo federal.
Então o governo vai ter muita dificuldade para gerir uma coalizão mais difícil do que hoje, vai ter mais dificuldade de legislar e de operar politicamente. E é claro que, quanto menor a coalizão, mais difícil vai ser gerir essa quantidade tão multifacetada e complexa de forças que atuam sobre o sistema político. Não vai ser fácil.


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