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JANIO DE FREITAS
Painel dos sonos
Nem sempre, ou raramente, é
possível responder as cartas de
leitores, mas são, todas, como prêmios ao jornalista destinatário:
mesmo que iradas, dão prova de
uma atenção pessoal que nem
sempre, ou raramente, a maioria
do trabalho jornalístico tem com
os leitores. Pois hoje, para retomar contato, respondo a uma
carta. Aquela que indagou, no
Painel do Leitor de terça-feira, se
"o governo, em especial Lula, dorme direito" depois de ler as críticas que lhe são feitas.
Dorme. Não porque, sugere a
expressão japonesa que deu nome
a filme, "o homem mau dorme
bem". Não é o caso de Lula. O que
se passa é que o Lula presidente se
elevou, por ação própria, a um nível acima dos seres suscetíveis de
preocupações, incertezas e outros
pesares simplesmente humanos.
No atual ciclo de presidentes civis,
os únicos a dar sinais de aflição
com o peso de suas responsabilidades foram José Sarney e Itamar
Franco. Lula incorporou-se aos
ungidos Fernandos. É um predestinado, um escolhido, como nos
comunicou uma frase com a delicadeza de não ter explicitude chocante: "Deus não me trouxe de
tão longe para nada".
Quem, senão um ser especial,
seria capaz de dizer apenas, diante do sofrimento estúpido exigido
a tantos idosos em estado lastimável, que Ricardo Berzoini "fez
um gol contra"? Este breve comentário passou batido por aí
afora, criticado tão só como reprimenda insuficiente a Berzoini.
Gol contra, até Berzoini sabe, é
gol contra o próprio time. No caso, portanto, contra o governo,
contra a imagem do governo. O
que, de fato, não precisava de
mais do que o comentário ligeiro
e bem humorado de Lula.
Desde os anos boçais da ditadura, porém, o poder não comete
um ato de tamanha desumanidade, como foi a suspensão do pagamento de aposentadorias e pensões para que mesmo os inválidos,
os doentes e os esgotados pelos
anos se pusessem em filas ao relento, para provar com suas precariedades que sobrevivem apesar do INSS.
Se a legislação de direitos humanos e o Estatuto do Idoso não
fossem bastantes contra a decisão
governamental, até o seria, lembrando o bravo Sobral Pinto, a
Lei de Proteção aos Animais. Mas
nada se opôs à perversão do poder.
Não exigiria muito trabalho encontrar, na legislação criminal,
artigos com que brindar a autoria
da perversidade deliberada e reafirmada. Mas nada aconteceu.
Assim como nada aconteceu à
subsequente decisão de Berzoini,
de ignorar deliberação judicial a
propósito da reposição de partes
usurpadas a pensões e aposentadorias.
Seria boa notícia, se tivesse mais
do que palavras, a divulgada por
Cristovam Buarque, ministro da
Educação, segundo a qual Lula
"ficou preocupado, triste e descontente ao saber que o trabalho
infantil aumentou", a partir da
sua posse, em 50% nas seis principais regiões metropolitanas. Ainda bem que um outro ministro
dispensou, mesmo que recorrendo a meias verdades, um diagnóstico atribuível a oposição: "O aumento do trabalho infantil deveu-se ao ajuste que tivemos de
fazer e que provocou aumento do
desemprego temporário, mas isso
já passou, e a que o Programa de
Erradicação do Trabalho Infantil
teve de ser controlado para poder
expandir nos próximos três
anos".
Ministro dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda abusou
do suposto direito político de
abrandar as denúncias da realidade. O desemprego não se mostrou temporário, nem passou; o
programa de redução do trabalho
infantil não foi "controlado", foi
paralisado, e não para expandir
nos próximos três anos, mas porque Antonio Palocci Filho decidiu
que seus recursos seriam cortados, para engordar o superávit
acordado com o FMI. Apesar dos
malabarismos, Nilmário Miranda deixou claro que o aumento
do trabalho infantil é a consequência lógica, e sem surpresa, da
política econômica de um presidente que precisou trabalhar ainda na infância. Talvez ainda não
fosse um predestinado.
Se Lula ficou "preocupado, triste e descontente", deve ter sido
uma reação passageira -além
de equivocada, se consideradas as
decisões pessoais que levam ao
maior trabalho infantil. Recebida
a notícia durante o dia, já à noite
a platéia presidencial divertia-se
com o filme dos Cassetas, em mais
uma das sessões semanais em que
o espetáculo pretendido pela Presidência está menos na tela do
que fora dela, para daí passar à tv
e às primeiras páginas.
Lula, por certo, dorme bem, ou
o governo seria outro. Mas o sono
dos justos é o dos que têm dormido mal, angustiados pelo "ajuste"
que a tudo desajusta mais, exceto
os bancos e congêneres.
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