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NO PLANALTO
Um descalabro que sobrevive a cinco presidentes
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
O que faz do pagamento de
impostos um suplício é a
certeza de que do outro lado do
balcão há um impostor. Aqui vai
mais uma evidência de que governos, estróinas pertinazes, pensam que dinheiro é grátis. Não sabem o preço do suor.
Pede-se licença ao leitor para
narrar um descalabro de azedar o
domingo. A encrenca cruzou quatro Presidências: Sarney, Collor,
Itamar e FHC. Pulsa agora sob
Lula. Ameaça aliviar a bolsa da
Viúva em R$ 1,810 bilhão.
Aconteceu assim:
1) em fevereiro de 1988 (Sarney),
Brasília desapropriou um porto
no Estado do Pará. Fica na ilha
de Caratateus, 40 km ao norte de
Belém. Alegou-se que era "estratégico". Embarcaria toda a soja
das regiões Centro-Oeste e Norte;
2) dona do terminal portuário
desapropriado, a empresa Sotave
Amazônia tornou-se credora de
uma indenização. A moeda de
então era o cruzeiro. Ao transpor
o valor do porto para reais, o governo produziu avaliações díspares;
3) para a Advocacia da União,
o terminal vale R$ 70,3 milhões.
Para a Cia. Docas do Pará, estatal
vinculada ao Ministério dos
Transportes, o preço alça à casa
dos R$ 200 milhões;
4) em 1990 (Collor), como o governo tardava em lhe pagar, a Sotave propôs a conversão de seus
créditos em títulos públicos
("moedas de privatização"). Endividada na praça, pediu que
parte do papelório fosse entregue
a seus credores;
5) os papéis começaram a ser liberados em 1991 (Collor). Súbito,
um dos credores da Sotave melou
o acerto. Chama-se IFC (International Finance Corporation). É o
braço financeiro do Banco Mundial. Fizera empréstimos à Sotave. Recebera em hipoteca o porto
desapropriado. Invocou preferência sobre os demais credores. Para
evitar problemas, o Tesouro suspendeu os pagamentos;
6) àquela altura, a Sotave já havia arrancado do erário, segundo
a Advocacia da União, R$ 410 milhões. De credora, passara a devedora. Teria de restituir à Viúva
R$ 339,7 milhões;
7) em setembro de 1994 (Itamar
Franco), Brasília anulou a desapropriação. Tido como "estratégico" em 1988, o porto fora abandonado. Convertera-se num mico.
Mas governos, como bêbados, são
imprevisíveis. E o Estado restabeleceria a expropriação em 1997
(FHC), por meio de decreto presidencial;
8) em 1998 (ainda FHC), a Justiça Federal do Pará mandou atualizar os cálculos do suposto crédito remanescente da Sotave. A empresa estimou que a Viúva ainda
lhe devia R$ 595 milhões. Em sucessivos recursos judiciais, o governo tenta esquivar-se do pagamento;
9) em 31 de dezembro de 2002,
último dia da era tucana, FHC
transferiu a gestão do porto à Cia.
Docas do Pará, a estatal vinculada ao Ministério dos Transportes.
O terminal continuava abandonado. Equipamentos como esteiras rolantes e guindastes haviam
sido roubados. Traficantes de
drogas serviam-se da plataforma
de embarque;
10) o cenário de terra arrasada
se estendia aos tribunais. O governo amargava sucessivas derrotas.
Foi batido no TRF-1 (Tribunal
Regional Federal) e no STJ (Superior Tribunal de Justiça). Julgou-se que os recursos contra o pagamento da indenização eram incabíveis;
11) em 2003 (Lula), a Advocacia
da União e o Ministério Público
protocolaram novos recursos no
TRF. O procurador da República
Augusto Aras pede o abatimento
das parcelas já pagas pela União.
"O Ministério Público só pode
atuar como parecerista", diz Sant'ana Pereira, advogado da Sotave. "Não tem poder para agravar
coisa nenhuma";
12) em abril passado, a Justiça
Federal do Pará atualizou os cálculos. Injetou na conta da desapropriação "juros compensatórios", "juros moratórios" e "juros
de mora sobre os compensatórios". Concluiu que Brasília ainda deve à Sotave a bagatela de R$
1,4 bilhão;
13) considerando-se os R$ 410
milhões que o governo diz já ter
desembolsado, a conta vai a R$
1,81 bilhão. "R$ 800 milhões voltarão aos cofres públicos", diz
Amaury Mattos, advogado da Sotave e de um grupo de credores da
empresa. "Referem-se a dívidas
com o fisco, com a Previdência e
com organismos estatais";
13) "Isso é maluquice", ataca
Nelson Simas, diretor de Gestão
Portuária da Cia. Docas do Pará.
"Se fosse construído hoje, o porto
da Sotave custaria no máximo R$
200 milhões." Projeta-se a construção de um novo porto no Pará.
Será erigido no meio do oceano.
Terá estrutura bem maior que a
do terminal da Sopave. Receberá
"os maiores navios cargueiros do
mundo. Custará R$ 400 milhões";
14) em 18 de junho de 2004, o
ministro Alfredo Nascimento
(Transportes) inaugurou, finalmente, o terminal portuário da
Sotave. Eram decorridos 16 anos
desde a desapropriação. "Nossa
obrigação é pôr esse porto para
funcionar para funcionar", diz
Paulo de Tarso Carneiro, diretor
de Transportes Aguaviários da
pasta dos Transportes. "Ainda
neste ano, devemos fazer uma licitação, para transferir a operação dos terminais para empresas
privadas";
15) virou fumaça o sonho que
havia justificado a aventura de
1988. Não há notícia de um único
grão de soja que tenha sido embarcado no porto da Sotave;
16) só há duas semanas a Receita Federal autorizou o funcionamento efetivo do porto. Realizaram-se até aqui, em caráter experimental, três carregamentos de
madeira rumo à Europa;
16) como se vê, o brasileiro é
mesmo um sujeito desafortunado. Como contribuinte, paga para
que tecnocratas idiotas tenham
idéias idiotas que, adotadas por
autoridades idiotas, resultam em
prejuízos que fazem dos que os financiam perfeitos idiotas.
PS.: a partir desta segunda-feira, o repórter sairá em férias.
Voltará à trincheira em 30 dias.
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