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ENTREVISTA
Para José Arthur Giannotti, narcisismo petista paralisa governo; vitória de Serra em São Paulo destravaria a política
Se PT perde, democracia ganha, diz filósofo
Renato Stockler/Folha Imagem
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O filósofo José Arthur Giannotti, que é amigo há mais de 50 anos de Fernando Henrique Cardoso, durante entrevista em sua casa |
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
"É fundamental para a democracia que o PT saia enfraquecido", declara o filósofo José Arthur
Giannotti, 73, sobre as eleições do
domingo que vem, ao declarar
seu apoio ao candidato tucano à
prefeitura paulistana, José Serra.
Importante para a democracia,
ele diz, porque o PT no poder federal paralisa as ações de governo
e a política, ao preservar para si a
imagem narcísica, nunca realizada, do antigo PT, revolucionário,
transformador.
Esse narcisismo impede mudanças e questionamentos das
decisões do governo, mesmo as
"neoliberais", ele diz. ""Estamos
nos acertando, nos ajustando,
mas no momento exato nós voltamos com as nossas políticas". É o
milênio. Jesus Cristo não vem
agora; no ano mil ele vem."
Como o governo não tem nenhum rumo, está minando sua relação com o legislativo. Tudo ficou meio parado
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Afirmando que a vitória de Serra obrigaria o governo "a pensar
qual é o rumo que irá tomar" e
salvaria o país dessa crise da prática política, o filósofo, amigo há
mais de 50 anos de Fernando
Henrique Cardoso, alerta sobre o
perigo de que a própria desorganização interna do PSDB termine
por levá-lo para a direita.
A seguir, trechos da entrevista.
Folha - Qual é o perfil psicológico
do governo Lula?
José Arthur Giannotti - Eu diria
que ele é muito mais narcísico do
que esquizofrênico. Na medida
em que ele de tal forma se encanta
com sua imagem projetada no lago que corre o risco de se afogar.
É narcísico porque, como todo
mundo sabe, as políticas hoje têm
como seu foco o centro. A não ser
para os apocalípticos, a destruição do capitalismo, e para os dinossauros, a continuidade de
uma política de livre câmbio e de
mercado. Nós temos que regular
o capital. Fazer isso significa realizar políticas reformistas. O PT
percebeu isso claramente, veio
para o centro e está disputando
com o PSDB essa hegemonia.
Só que o narcisismo é um impedimento. Porque encobre a permanência de um ideal revolucionário que, não tendo condições
[de se realizar], fica permanentemente na base da fantasia.
Folha - Que imagem é essa que
eles vêem no espelho?
Giannotti - É a imagem deles
mesmos como revolucionários.
Dentro da democracia, com a
qual têm pouco compromisso, se
vêem como no subterrâneo, fazendo uma revolução.
O Lula diz a todo momento que
a eleição dele é um evento na história da humanidade. Trata-se de
um componente messiânico, mas
não só. As revoluções dão nome e
criam novos calendários. Como
tem que começar tudo de novo, o
Bolsa-Escola vira Bolsa-Família, o
brizolão vira CEU.
Você tem esse ato de nomeação,
de achar que você está iniciando
uma nova era. Isso é pura fantasia, já que a parte real do governo,
que é a parte econômica, está simplesmente seguindo a política anterior neoliberal.
Com restrições
-porque aquela
oposição que existia no governo
FHC, entre os monetaristas e os desenvolvimentistas, e o Fernando
Henrique decidiu
claramente a favor
dos monetaristas,
fez com que pelo
menos você tivesse certa dinâmica na pressão em relação à economia. Havia uma tensão e um
questionamento. Hoje não.
Folha - Esse "narcisismo" impede
esse questionamento?
Giannotti - Sim. No fundo, uma
figura messiânica vai dizer: "Bom,
estão fazendo isso, estamos nos
acertando, nos ajustando, mas no
momento exato nós voltamos
com as nossas políticas". É o milênio. Jesus Cristo não vem agora;
no ano mil ele vem. A política é
bem descrita numa linguagem religiosa. Eles esperam o milênio.
Esse tipo de milenarismo está
levando a uma desestruturação
do próprio governo. Você não
tem focos precisos de decisão. A
área econômica decide de um lado, os outros ministérios decidem
mais ou menos cada um à sua maneira, e não há uma integração da
ação governamental. O Executivo
se torna pouco eficiente, fora a
área econômica.
Ou o PT é jogado contra a parede, de tal forma que seja obrigado a repensar o seu narcisismo, ou entramos numa anomia
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Do lado do legislativo, tivemos
a tradicional busca da governabilidade. Só que, ao
contrário do governo anterior,
em vez de você fazer uma aliança
que definisse os
parâmetros dessa
governabilidade,
você fez uma
aliança posterior.
Que compra os
"300 picaretas" e
desestrutura partidos.
Sendo posterior, os movimentos são ad hoc, e você [o governo]
não sabe como é que está operando. A ponto de ser necessário querer rachar o PFL e trazer a parte
mais clientelista para o governo.
Há uma desestruturação do sistema político. Como o governo
não tem nenhum rumo, a não ser
a sobrevivência no poder, ele está
minando sua relação com o legislativo. Tudo ficou meio parado.
Não podendo decidir internamente, ele joga para o legislativo
resolver a questão. O legislativo,
que não é tonto, joga de volta para
o governo, que é obrigado então a
emitir medidas provisórias. Há
uma desestruturação em relação
ao jogo dos Poderes.
Folha - Há relação entre essa paralisação do governo e do legislativo e aquela imagem narcísica de
que o sr. falava?
Giannotti - A imagem de que falo é justamente uma maneira de
resolver, num
mundo de
imagens, essa
luta fratricida
que eles não
podem resolver na realidade. Essa luta
fratricida de
fogo amigo,
entre uma forma de governo
patrimonialista, e outra reguladora, é resolvida por
meio da idéia
de que todos estão contribuindo
"para fazer uma enorme revolução no país, que estamos renomeando a nossa história".
É preciso entender o que é milênio. É o retorno do PT às suas origens, à sua vocação socialista, à
sua vocação de mudar o mundo, e
para isso é preciso reforçar o Estado, com o risco de instalar um governo autoritário.
Há a idéia de que uma revolução social poderia substituir as
forças políticas. O milenarismo
está ligado justamente a essa idéia
de que você não precisaria mais
fazer política. Então o que você
faz? Toma o aparelho de Estado, o
que estão fazendo de maneira superlativa. E qualquer crítica a esse
processo é tomada como traição.
A imprensa quando critica além
do necessário está traindo, o Ministério Público está traindo, assim por diante.
Você não pensa mais o adversário como aquele que colabora para os rumos do país,
na medida em que
traz um outro ponto
de vista para a discussão e para a prática. Se imaginamos
que os movimentos
sociais vão acuar a
política, se o próprio
governo acredita que
é o representante deles, que tem a lógica
dos movimentos sociais, e não a da política, a idéia é: a democracia burguesa é
instrumento para
que possamos realizar a liberdade
social, a igualdade.
Folha - O sr. diz que o governo
não reconhece o adversário e não
permite o jogo político. Mas vamos
falar do adversário: o PSDB traz alguma coisa? Ele não está perdido
também?
Giannotti - Está. E na medida em
que o PT vem e agarra as bandeiras do PSDB, ele fica como barata
tonta. O PSDB sabe que não pode
ser engolido pelo PT, mas não
tem bandeiras precisas. Mais ainda: enquanto o PT se organizou
como um partido altamente empresarial, como um partido americano, o PSDB ficou ainda na base de um partido vinculado à ação
dos governadores. Então, ou o
PSDB se torna um partido à americana ou perde para o PT por
muitos anos.
Não estou dizendo que o PSDB
é a solução. Estou dizendo que há
uma reforma do capitalismo, que
pode ter dois eixos: por meio dos
fundos públicos ou dos ordenamentos jurídicos etc. A política
hoje, portanto, parte do centro.
A fonte da política contemporânea é o centro. O PT veio, organizou, mas conserva o imaginário
revolucionário. O PSDB continua
dependendo de forças que vêm
dos governos estaduais. Com um
perigo evidente: de ir para a direita. Tanto assim que, se me lembro
bem, o candidato de Geraldo
Alckmin para a Prefeitura de São
Paulo era um secretário de Segurança. Com um discurso claramente de direita. Existe essa ambigüidade também no PSDB. Só
que, como ele já não está no poder, não foi obrigado a encontrar
a unidade -que o PT encontrou
no imaginário e no narcisismo.
Folha - O sr. descreve uma crise
da prática política...
Giannotti - ...podendo vir acompanhada de uma espécie de euforia política graças a um crescimento que não é sustentável. Isso
é que é o mais perigoso. Se começarmos a ter uma folga econômica, e for possível uma politização
desses ganhos, teremos a reeleição do Lula. Com isso, continuaremos a ter o mesmo tipo de política. Que significa a desestruturação de todo o sistema político brasileiro.
Folha - Então, quando Marta Suplicy diz que a vitória do Serra poderia representar uma crise política, o sr. defende o contrário?
Giannotti - Sim. É fundamental
que o PT saia enfraquecido dessas
eleições. Não porque somos aliados do Serra -isso também seria
um motivo. Como sabíamos desde o início, a mudança viria mais
do Serra que do Lula. Ainda acho
que a mudança virá mais dele que
da Marta.
Ou o PT é jogado contra a parede, de tal forma que seja obrigado
a repensar o seu narcisismo imaginário, e portanto seja obrigado a
pensar qual é o rumo que irá tomar, ou senão, entramos numa
anomia.
É fundamental para a democracia que o PT saia enfraquecido. E
mais ainda: que se coloque o Lula
entre o fogo e a caldeirinha. Ou
faz uma reforma ministerial e
abandona esse tipo de política
sindical que levou para o governo,
ou nós entramos numa situação
em que não sabemos para onde
vamos.
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